Quando completa 50 anos de carreira, o pediatra fala à Lusa das suas preocupações atuais e aponta como um dos grandes desafios da pediatria moderna os problemas comportamentais e relacionais das crianças e dos adolescentes. “Hoje talvez estejamos na linha de fronteira de passar do modelo patológico para o modelo relacional e isto faz a diferença na pediatria, na educação, na psicologia, em toda e qualquer atividade formativa”, afirma.

Para Gomes Pedro, que aprendeu e começou a prática clínica centrada no diagnóstico das doenças, hoje é fundamental estabelecer precocemente uma relação entre o pediatra, os pais e o bebé, preparando-os para as várias fases do desenvolvimento expectáveis e acompanhando-os nos problemas que daí possam advir.

É o que se passa com a Hiperatividade e o Défice de Atenção (PHDA): “Estas doenças e expressões aparecem porque o pessoal de saúde está mais sensível, mais atento às perturbações de comportamento do que há uns anos atrás”. Gomes Pedro adverte, no entanto, que esse olhar, o começar a olhar para o comportamento, leva, como risco na intervenção dos profissionais, a considerarem quase matematicamente: «o menino está muito ativo, está hiperativo».

“A professora queixa-se de que está ativo, «é uma síndroma de Attention deficit hyperactivity disease», a professora diz «leve ao seu médico», e os médicos que não estejam ainda bem formados, bem alicerçados no que é o comportamento normal do que é um sinal de risco no comportamento, receitam o metilfenidato” (fármaco para tratamento da PHDA), acrescenta.

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Isto comporta o “risco de se usar sistematicamente substâncias farmacológicas quando não há hiperatividade nenhuma”, pois “a atividade que vemos, por exemplo, num gabinete, é própria de uma criança com três, quatro ou cinco anos, que gosta de explorar e que, mais do que normal, é desejável”, sublinha.

Segundo o pediatra, “é muito frequente os pais chegarem com uma criança com três anos e a dizer “ela deve ter hiperatividade e precisa de ser tratada”.

O que acontece é que as pessoas estão mais despertas, o que comporta outros riscos: a hiperatividade e o défice de atenção hoje está, por um lado, sobrediagnosticado, e por outro, mal diagnosticado, o que significa que há crianças que tomam o metilfenidato sem precisarem e outras que precisariam e não o tomam.

“Há crianças hiperdiagnosticadas e outras crianças hipodiagnosticadas”, sublinhou, acrescentando que “a moral da história” é que é preciso garantir que não se deixa de diagnosticar uma hiperatividade e défice de atenção, que é facilmente corrigida farmacologicamente, mas que também não se começa a usar drogas quando não é necessário. Não é que a medicação tenha muitos riscos, salienta, mas “um princípio fundamental na medicina é tratar quando é preciso e hoje a implicação de tratar não é só medicamentosa, mas é o acompanhar”.

A grande questão é que não existem ainda meios para garantir um diagnóstico exato da PHDA. “Não há propriamente um meio tão concreto como fazer uma análise para ver se há uma infeção, uma apendicite. A gente vê que há uma alteração dos glóbulos brancos, que mesmo que não se palpe conveniente uma barriga para fazer o diagnóstico, há uma análise concreta que nos diz «há infeção nesta criança»”.

No domínio do comportamento, no chamado modelo relacional, isso não é tão fácil, pois embora haja testes, como o Connors e outros, que dão pistas para que se possa estar perante uma PHDA, é preciso que o pediatra — “deve ser ele a tomar conta destas crianças – tenha experiencia e tenha competência para distinguir entre essa perturbação e uma atividade normal”.

“É que é ‘hiperativa’ toda a criança pequena, nomeadamente a criança que entra para o jardim-de-infância”, e é preciso ter isso bem presente e “não hiperdiagnosticar síndromas de défice de atenção que obrigam imediatamente a medicar”.