A história de Shokrana Khalil Alawi mistura-se com a de muitas mulheres sírias. Apanhada por uma guerra que não compreende, a antiga professora primária viu-se obrigada a deixar tudo o que tinha para trás. A família, os amigos, a casa que tinha construído. Quando foi pedida em casamento por um membro do Estado Islâmico, Shokrana soube que não tinha outra alternativa — tinha de fugir.

A vida da antiga professora primária era muito diferente em 2011, antes dos primeiros avanços das tropas jihadistas na Síria. Casada de fresco, Shokrana tinha-se então mudado para Deir Ezzor, no leste do país, na companhia do marido. Era aí que tinham escolhido começar uma família.

Mas tudo mudou demasiado rápido. Quando os protestos contra o presidente Bashar al-Assad se transformaram numa verdadeira insurreição, o seu marido, um agente secreto sírio, decidiu juntar-se ao Exército Livre da Síria, no oeste do país. As más notícias não tardaram em chegar. Passadas poucas semanas, Shokrana recebeu a mensagem: o seu marido tinha sido morto durante um ataque na linha da frente.

Sozinha, com um filho pequeno e chantageada pelo regime, foi incapaz de regressar a Hassakeh, onde a sua família ainda morava. Decidiu então ficar em Deir Ezzor, esperando que as coisas melhorassem. Voluntariou-se para dar aulas numa escola primária, que nada mais era do que um bunker subterrâneo que servia de sala de aula. Foi a caminho do trabalho que se cruzou pela primeira vez com aquele que iria mudar radicalmente a sua vida.

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“Viu-me e começou a pedir-me para casar com ele. Pensei que era uma piada”, contou ao Telegraph. Os primeiros contactos foram feitos através da vizinha de Shokrana. “Tentou usar este método muitas vezes”, explicou. Apesar da insistência, a resposta da professora era sempre a mesma — não estava pronta para voltar a casar. Com a chegada do Estado Islâmico a Deir Ezzor, os pedidos de casamento passaram a transformar-se em ameaças. “Em breve serás minha”, mandava-lhe dizer.

O homem, um marroquino dez anos mais novo do que Shokrana, era membro da Jabhat al-Nusra, o ramo sírio da Al-Qaeda. Há muito que ajudava em segredo os jihadistas e, com a chegada do Estado Islâmico à cidade a promoção não tardou em chegar. O novo cargo encorajou-o a tomar uma posição em relação a Shokrana. Sem precisar de intermediários, disse-lhe simplesmente “casa comigo ou tornar-te-ei minha escrava”. A professora percebeu que não tinha alternativa. Tinha de fugir.

A dois dias do casamento, com a ajuda de alguns amigos do Exército Livre da Síria, Shokrana conseguiu escapar. Na companhia do filho, Mustafa, atravessou um dos rios que rodeiam a cidade e conseguiu chegar a Urfa, na fronteira turca, onde tentou começar uma vida nova.

Não foi fácil. “Procurei emprego em todo o lado, mas toda a gente sabia que era uma mulher sozinha”. As propostas que recebiam não eram, na maioria das vezes, as melhores. “Os homens aqui ameaçam as mulheres como se fossem objetos, como corpos que podem ser usados para o que eles quiserem”, disse ao Telegraph. Durante cinco meses, ela e Mustafa partilharam um pequeno apartamento com uma outra família de refugiados, da região de Aleppo. Mas nem isso correu bem. “O chefe da família já era casado, mas decidiu que me queria como segunda mulher”. Shokrana teve de deixar a casa.

Atualmente, vive num pequeno quarto sem água potável, nos arredores de Urfa. A única fonte de luz é uma pequena lâmpada no teto. Mas, apesar das dificuldades, Shokrana não desiste. Determinada como sempre, faz o que pode por Mustafa, que frequenta uma escola gratuita para refugiados sírios. Tudo o que não aprende ali, a mãe ensina-lhe em casa.”Sei que temos de continuar a tentar. Estou sempre à espera de qualquer coisa melhor”, admitiu a professora primária. “Mas, por agora, é difícil ver que futuro posso dar ao meu filho”.

“Esta é uma guerra que está a ser travada através do corpo das mulheres”

A escravatura de mulheres é uma prática comum entre os jihadistas. Dezenas de mulheres, a maioria adolescentes, são raptadas e vendidas todos os dias em mercados de escravos na Síria e no Iraque. A maioria pertence à minoria Yazidi, um alvo frequente dos ataques do Estado Islâmico.

O rapto tornou-se numa parte importante na estratégia de recrutamento do Estado Islâmico. “É assim que eles atraem os homens: temos mulheres à vossa espera, virgens com as quais podem casar”, explicou Zainab Bangura, emissária das Nações Unidas para a violência sexual. “Os combatentes estrangeiros são a espinha dorsal da luta”.

De visita aos campos de refugiados na Turquia, Líbano e Jordânia, a emissária defendeu que estas jovens estão a ser vendidas “pelo preço de um maço de tabaco”. Para Bangura, “esta é uma guerra que está a ser travada através do corpo das mulheres”.

Depois de capturadas, estas mulheres são levadas para uma pequena casa, onde são “trancadas num quarto, despidas e lavadas”, explicou Bangura. Depois são obrigadas a ficar em frente de um homem que decidirá “quanto é que valem”.