Quem de nós nunca sonhou, na meninice, ser futebolista, ter no Dragão, na Luz ou Alvalade, quem sabe em Camp Nou ou na Bombonera, adeptos fervorosos a torcer por nós, a entoar-nos o apelido, idolatrando-nos. Quem de nós nunca sonhou, nem que só uma vez, correr desalmadamente relvado fora, com os braços gloriosamente erguidos no ar, depois de fazer um golo no último sopro de uma final, preferencialmente na da Champions, claro, e vencer o caneco no ar. E depois não o dar a mais ninguém a sentir, como João Pinto (o tal do coração com uma só cor: azul-e-branco) o fez na final de Viena, em 1987.
Depois, naturalmente, e visto que não temos os pés abençoados por Deus de um Cruyff ou Maradona no ataque, nem a voz autoritária de um Beckenbauer ou Maldini na defesa, ou tão pouco a visão prodigiosa de um Paulo Sousa ou Pirlo no meio-campo, aí despertamos do sonho.
Mas sonhe-se – na verdade, até é um pesadelo com um Freddy Krueger de pronuncia basca e penteado com risquinho ao meio – isto: é-se futebolista, um portuense (e portista) dos quatro costados, veste-se a camisola azul-e-branca com vaidade, brio, suam-se as estopinhas por ela, mas a redondinha, quando nós chega aos pés, chega em labaredas, chamusca-nos todos. Quando queremos desmarcar um dos nossos, erramos um passe. E outro. Muitos, sucessivamente. E não voltamos sequer a tentá-lo. Quando queremos rematar, acertamos nas orelhas da bola. Sempre. E o remate falha a baliza por um par de metros – a nós, pareceram-nos quilómetros. E não voltamos sequer a tentá-lo. Antes, ficamos prostrados no relvado, cabisbaixos. Não é mais o nosso nome que escutamos das vozes que entoam nas bancadas; são apupos. Acenam-nos com lenços, não brancos de concórdia, mas hostis, de embaraço por nós. Pedem-nos que joguemos à bola – e não conseguimos, como se as pernas nos pesassem uma tonelada e o discernimento nos fosse uma palavra estrangeira, desconhecida, pior que cantonês.
O treinador, nada diz, só lhe escutamos volta e meia assobios, às vezes gritaria e nada mais, mas o rosto dele é sempre de desamor, de sobrolho franzido, sempre, mais tristonho que embrutecido, sem soluções. E perguntamo-nos: se ele acredita em nós, futebolistas, em quem vamos nós acreditar, nele ou noutro? Foi provavelmente isto que os futebolistas do FC Porto – como outros, noutros clubes, noutros tempos e eras do futebol – sentiram até ao último jogo, com o Rio Ave, que empataram no Dragão.
O treinador foi-se. De vez. Dos futebolistas disse-se e escreveu-se – como escreveu, em 1897, um jornalista do The New York Journal sobre Mark Twain, sabendo (por trinta e um de boca) que o escritor tinha os pés para a cova — que estavam, os futebolistas como Twain, mortos. Twain não só não morreu, como, a 2 de junho de 1897, em resposta ao próprio obituário, escreveu no mesmo jornal: “O relato sobre minha morte é um exagero” – erradamente cita-se Twain como tendo dito: “Os relatos sobre minha morte são manifestamente exagerados”; o que, a fim de comparar Twain e o FC Porto, é-nos igual se escreveu assim ou assado.
Os futebolistas do FC Porto, num plantel que custou rios de dinheiro a erguer, repleto internacionais, nada toscos — nem tolos –, reagiram.
Não por escrito como Twain, mas como melhor sabem: com a bola coladinha nas botas. O Boavista era o que de melhor se podia pedir para voltar à vida. Porquê? Porque não fez um só remate em todo o jogo, porque quando atacava, ou contra-atacava, fazia-o o mal, nervosamente, e porque a defender, com os golos a entrarem um por um, cinco ao todo, era um sufoco na defesa que só visto, um “Aí, Jesus”, com a bola a ser cortada em chutão para as couves, consecutivamente, e a voltar para mais credo na boca — as lesões, três ao todo, não facilitaram a vida ao Boavista; a partir dos 73′, com a lesão de Anderson Correia e com as substituições esgotadas, o Boavista viu-se forçado a jogar com menos um. E foi assim até final.
Quanto a quem contribuiu para o Totobola. Herrera marcou como tem marcado — e até abriu a contagem num golo tremendo de técnica. Layún assistiu como tem assistido. Mas Aboubakar voltou a bisar como raramente bisou nos últimos jogos; a última vez que o fez foi a 15 de agosto, com o Vitória de Guimarães. E Danilo, esse, assistiu como nunca assistiu, de canhota e desde a ala, e marcou (de calcanhar e com classe) como nunca antes. Corona, o mexicano que começou a época a borbulhar (ou não tivesse ele nome de cerveja) de golos e de dribles ziguezagueantes, não era capaz de driblar ninguém contra o Rio Ave; mas hoje driblou dois – e quem mais lhe surgisse pele frente, seria driblado também –, fazendo um golo de quem respira confiança.
Todo o plantel respira confiança. Mais do que confiança: respira. Só. E não é coisa pouca, não. Não há mais uma corda de volta do pescoço, um cadafalso onde se vá cair ao menor erro, quando o passe sai torto, o remate transviado demais, ao primeiro assobio e lenço a acenar, branco e de adeus.
Lopetegui saiu. Rui Barros, com poucos treinos e caladinho no banco como o era nos relvados, não mudou nada – nem o onze ele mudou. Não foi preciso. Os futebolistas fizeram-no por ele. Mudaram a atitude, verticalizaram o jogo, arriscaram. E saíram-se bem, trazendo com uma mão-cheia de golos no saco, de volta ao Dragão. Os sorrisos voltaram, por fim, àqueles rostos angustiados de quem vive num constante “Pesadelo em Elm Street”. Venha quem vier treiná-los, e tendo eles o talento que têm, só precisa de saber uma coisa: que eles vivem o sonho da sua meninice. Acima de tudo, há que deixá-los continuar a sonhar. Com uma mão sobre eles, que mais do que pesar, ampara, guia. É que ninguém que ter pesadelos com bolas em labaredas e bancadas a apupá-los o jogo todo, todos os jogos.
Agora, chichi e cama. Acabaram-se as noites mal dormidas no Dragão. Até ver.