Tinha 20 anos e o Benfica bateu à porta. A pulsação intensificou-se. O pai, ferrenho benfiquista, queria muito, ele também mas hesitou. Era um clube muito grande e ele novato naquelas andanças, talvez fosse perder o comboio, aquele que permite subir degrau a degrau. Sem pressas, preferiu. Isso foi ultrapassado, mas o coração continuaria dividido eternamente na família Pires no que toca a França e Portugal.

“Sim, sim, claro. É normal”, admitiu essa divisão amorosa em entrevista ao Observador, em outubro de 2014. “Por um lado tinha que jogar para o meu país, para a camisola francesa, porque nasci lá e formei-me em França. Mas do outro lado tinha a família portuguesa, que estava comigo e queria que Portugal ganhasse. Era complicado entrar em campo e ver que à minha frente estavam portugueses.”

De três duelos, um ficou incrustado na memória de Robert e da sua família. Em 2000, a França de Pires, Henry e Zidane eliminou Portugal de Figo, Rui Costa e João Pinto. “Nesse momento o meu pai ficou muito contente. Tinha ali o filho a jogar com a camisola francesa e, do outro lado, via a seleção do seu país a jogar. Quase que o vi a chorar por Portugal. Para ele é que foi muito, muito complicado”, contou, entre risos.

Este é o drama dos lusodescendentes: meter na balança o peso do coração e a decisão certa para uma senhora carreira internacional. Bom, ou então não. Kevin Gameiro, avançado do Sevilha, tem ascendência portuguesa e nunca tremeu na hora de decidir. “Não estou arrependido. O meu país é a França. Não tenho raízes em Portugal. Apenas o meu nome é português. É um orgulho ter usado a camisola da seleção francesa e espero voltar a ser chamado. Nunca vou estar arrependido por ter escolhido a França”, disse em outubro, aqui citado pelo MaisFutebol.

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Desporto, Futebol, campeonato continental nível 1

Anthony Lopes

“Eu já era fã de Portugal de Vítor Baía, Rui Costa, Figo…”

O passado e as voltas que a vida dá são responsáveis por dois lusodescendentes defenderem as cores de Portugal neste Euro-2016. Um deles usa luvas e não é por causa do frio. Anthony Lopes, de 25 anos, nasceu em Givors, a 20 quilómetros de Lyon. As raízes lusitanas colaram-no, até aos 15 anos, a viagens a Miranda do Douro e Barcelos, em todos os verões, de onde eram os avôs e o seu pai, respetivamente.

Foi precisamente no grande clube da cidade que estava pertinho de Givors, o Olympique Lyonnais, que se formou e ganhou reputação de ser um guarda-redes jeitoso. Chegou lá garoto e, passado mais de uma dezena de anos, ainda por lá anda, sendo agora o número 1, sucedendo a Hugo Lloris, o atual capitão da seleção francesa.

Anthony Lopes, em entrevista ao Expresso (novembro de 2010), contou que quis seguir as pisadas do pai, imitá-lo, foi assim que decidiu ser guarda-redes. “A verdade é que era muito engraçado, mergulhar no chão, na lama (…) Foi ele que me deu conselhos desde o início”, contou. Os anos passaram e o caminho que tomou revelou-se certeiro, chegando assim à seleção portuguesa. E a decisão, foi difícil?

“Comecei com os sub-17, foi uma decisão fácil, queria jogar pelo meu país, que é Portugal”, disse, em Marcoussis, na primeira conferência de imprensa de um jogador da seleção portuguesa. A estreia na equipa principal do país foi em março de 2015, na derrota contra Cabo Verde (0-2), no António Coimbra da Mota, no Estoril. “Foi uma decisão de coração, que tomei sozinho. Agora estou muito contente por estar aqui em França a disputar o Europeu”, revelou, já nas vésperas do Euro.

Antes, em maio, em entrevista à France Football, revelava que a decisão de jogar com a camisola das quinas tinha a ver com lógica. “Decidi há seis anos. Para mim, é lógico, era o coração a falar. Desde miúdo já era da seleção de Portugal. Eu já era fã de Portugal de Vítor Baía, Rui Costa, Figo…”

E esta história de disputar o Campeonato da Europa na sua terra de sempre, mas rodeado por homens que palram outra língua. “Claro que é um sentimento muito especial para mim, nasci em França. Estou quase em casa, mas estou aqui para defender a seleção de Portugal”, esclareceu o guarda-redes que escreve no seu Facebook em francês, a língua que melhor domina.

À France Football falou ainda sobre a sua ligação à terra da família e ainda sobre as referências. “Eu fui a Portugal todos os verões até aos 15 anos. Depois foi mais complicado por causa do futebol. Eu alternava entre Miranda do Douro, perto de Bragança, de onde são os meus avôs maternos, e Barcelos, do lado paterno.” Quanto às referências, preferiu escolher aqueles com quem trabalhou no Lyon: Grégory Coupet, Hugo Lloris e Rémy Vercoutre.

O objetivo? “Sou uma pessoa competitiva e penso em ser titular, claro. Mas não é algo que me tire o sono. Ambiciono ser o número um de Portugal e espero que chegue a minha vez, porque quando evoluis até um certo nível, só pensas em jogar. Trabalho para isso.”

PRAGUE, CZECH REPUBLIC - JUNE 30: Raphael Guerreiro of Portugal in action during UEFA U21 European Championship final match between Portugal and Sweden at Eden Stadium on June 30, 2015 in Prague, Czech Republic. (Photo by Matej Divizna/Getty Images)

Raphael Guerreiro (Photo by Matej Divizna/Getty Images)

“Foi a escolha do coração”

Não é grande adepto de peixe, mas quando é peixe grelhado português, nomeadamente a sardinha, Raphael Guerreiro entrega-se. Foi isso que o manteve sempre ligado ao país, no dia-a-dia. “Eu amo a cozinha portuguesa”, contou ao Le Parisien. Tal e qual como Anthony Lopes, que, à mesma publicação, se perde a rir a dizer que fizeram mal em sair de Portugal, porque adora bacalhau e os pastéis de bacalhau — “é tão bom”.

Driblando a gastronomia, o futebol fez este lateral de 22 anos puxar pela cabeça, num braço de ferro de identidades e cultura que não será fácil de viver. Na altura de escolher entre Portugal e França, este canhoto que acaba de assinar pelo Borussia Dortmund reconhece que foi complicado. Mas, no fim, ganhou o coração. “Não foi uma escolha fácil, porque nasci em França, cresci lá. O meu pai é português, a minha mãe francesa. Mas quando tivemos de decidir, optei por Portugal. Foi a escolha do coração. Sempre apoiei Portugal no futebol. Em casa, com os meus irmãos, havia um grande fervor em torno de Portugal. Nós fomos lá todos os anos em férias, de carro, perto de Faro. Era uma verdadeira família portuguesa”, diz à publicação francesa, entre risos.

Apesar da lealdade para com Portugal, Raphael Guerreiro, nascido em Le Blanc-Mesnil, nos subúrbios de Paris, não esquece o país da Torre Eiffel, e avisa que nunca a renegará. “Eu diria que sou tão francês quanto português.” Afinal, foi aquele país que o formou enquanto homem e jogador. Foi França que lhe permitiu abraçar o sonho e o futebol profissional. Foi no Caen, onde começou nos juvenis, que apareceu nos grandes palcos franceses, em 2012/13. Depois veio a transferência para o Lorient, em 2013/14, onde daria nas vistas na ala esquerda. Foram três anos até dar o salto para um grande europeu: Borussia Dortmund.

Sobre Raphael Guerreiro, Anthony Lopes, o outro lusodescendente da seleção das quinas, deixou algumas palavras elogiosas na tal entrevista ao France Football, referida acima. “O Rapha é um super-jogador. Espero que esteja no Lyon na próxima época.” Bom, o desejo, sabe-se agora, caiu em saco roto.

Bom, mas voltemos à história entre Portugal e França. E se se encontrarem no Euro, como vai ser? “Há uma grande rivalidade desportiva entre as duas nações. Portugal nunca teve sorte contra a França. Seria uma espécie de vingança pela nossa derrota no Campeonato do Mundo, em 2006, e no Europeu, em 2000…”