Com vista privilegiada sobre Lisboa, no topo de um hotel mesmo no centro da cidade, Teresa Cristina conta que na terça-feira à noite andou a passear pela Praça do Comércio, guiada por Caetano Veloso. Conheceu também o Bairro Alto e o Príncipe Real e, olhando a calçada, ficou encantada com o brilho noturno: “Estive em Paris, achava a cidade mais bonita do mundo, mas Paris não brilha tanto à noite como Lisboa”.

Artista pouco conhecida em Portugal, esteve aqui pela primeira vez esta semana em dois concertos no Coliseu de Lisboa, dias 6 e 7, convidada de Caetano para a primeira parte dos espetáculos do brasileiro. Foi pouco o tempo para passear. E mesmo assim ainda conseguiu ir sozinha a Sintra, levada por motorista. “Sempre reclamei interiormente, sempre, de nunca ter tido convites para vir a Portugal. E agora brinco: vim, mas não fui convidada por um português, fui convidada por um brasileiro”, diz.

Na tarde em que conversa com o Observador, diz-nos que ainda está “emocionada” pela noite do primeiro concerto. Encontrou “uma casa cheia e bonita, com um público caloroso”. Fala dos portugueses, de melancolia e de Cartola, o famoso sambista brasileiro cujas músicas gravou ao vivo para um disco e DVD que veio apresentar no Coliseu.

teresa cristina

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“O povo português tem melancolia, digo isto pelos romances, pela poesia, até pela música. Acho que o Cartola tem isso, assim como eu também. Considero-me uma pessoa um pouco melancólica.” Será. Mas também aparenta um sentido de humor corrosivo, como se lê adiante, quando conta o episódio da empregada de loja que a tratou de uma forma que considera racista.

Teresa não escolheu nada

Nascida há 48 anos no Rio de Janeiro, Teresa Cristina é considerada uma voz ilustre da nova MPB (Música Popular Brasileira). Outras vezes, creditam-na como responsável por uma onda revivalista em torno do samba tradicional. Considera mais uma coisa ou outra? Diz apenas que a separação rígida “é má para o samba e empobrece a MPB”. “O samba também é música, também é popular e mais brasileiro é impossível”, ironiza.

Cantora tardia, estreou-se em 1998, aos 30 anos, muito por influência do primeiro marido, que era músico. Até então, cantava em casa. Família e amigos elogiavam-lhe a voz, mas Teresa Cristina via-os como juízes em causa própria. E não ligava.

“Acho que respondi a um chamamento. Olho para trás e acho que há uma lógica. Era muito influenciada pela cultura americana, eu e a minha geração. Sou de 1968. Nos anos 70, no Brasil, a cultura era americana, na roupa, na atitude, tudo importado dos EUA. Na minha cabeça só existia música americana”, recorda, desenrolando uma lista de referências: Donna Summer, Earth Wind & Fire, Stevie Wonder, Barry White.

Na faculdade, estudou língua inglesa e cultura americana, mas começou a tirar más notas por ter poucas bases teóricas – “o meu inglês era autodidata”, precisa. Cancelou a matrícula, fez novo exame de acesso e escolheu literatura brasileira e língua portuguesa.

“Logo no primeiro período estudei Fernando Pessoa e Machado de Assis. Uma professora começou a ensinar Saramago. E foi arrebatador, enlouqueci com Saramago. Sem vírgulas, sem travessões, não se sabe quem está a falar. No final do primeiro período escrevi uma peça de teatro e comecei a fazer música. Nessa altura, um amigo trouxe um disco que o meu pai ouvia quando eu era criança, um disco de samba, do Candeia. A minha cabeça já estava diferente, estava a escrever e compor. Ouvi o disco e sabia tudo, tinha ouvido em criança. Entre os 7 e os 10 ouvia o disco o dia inteiro.”

A música que na infância lhe tinha causado desinteresse era agora um caminho que queria descobrir. Revela que, tardiamente na vida, se tornou umbandista. E também com isso se aproximou de ritmos mais tradicionais.

“A umbanda é uma religião brasileira, mistura de candomblé com catolicismo, e nas sessões as pessoas tocam tabaque e cantam com senhoras em coro. É muito bonito. Na hora de compor, tudo se misturou, a música da umbanda, com a música que ouvia na infância e que redescobri com 25, 26 anos. Tenho impressão que o samba me escolheu.”

[Teresa Cristina canta “Preciso de Encontrar”, original de Cartola]

“Quando comecei, o samba que tocava na rádio e na TV era o que chamávamos pagode paulista, uma música mais romântica, muito popular, com letra muito direta, sem figuras de linguagem, mais fácil de ser entendida. Esses grupos de pagode ganharam as rádios e as novelas. Comecei a cantar sambas de terreiro, sambas de quadra, da velha guarda, mais antigos, que as pessoas automaticamente chamaram samba de raiz. Até o estilo de samba que componho está perto disso, do samba de raiz”, contextualiza.

“Os jornais e as rádios quiseram colocar este tipo de samba num lugar decadente, porque era mais fácil outro tipo de samba que tivesse mais público, que vendesse mais e movimentasse mais dinheiro, mas dizer que esteve decadente acho que é uma inverdade.”

Daí a ser considerada pioneira, foi um passo. E Teresa Cristina não rejeita o adjetivo. Pelo contrário, destaca o papel que teve na revitalização do samba tradicional e de um bairro mítico carioca.

“Fui pioneira porque ajudei a levar o samba de volta à Lapa. Comecei a cantar num bar chamado Semente. A Lapa sempre foi um bairro boémio, residência de muitos sambistas. Wilson Batista e Geraldo Pereira, Leo Rosa… Eles frequentavam a Lapa, que era um antro de samba e de malandragem. Entrou em decadência, porque o lugar começou a ficar muito violento. E no final dos anos 90 era completamente deserta. O meu trabalho ajudou a Lapa. O bar em que eu cantava começou a ser procurado e várias casas começaram a imitar.”

Teresa bebe uma Coca-Cola enquanto espera por uma tosta que está atrasada. Quer demonstrar que mantém um gosto musical eclético. Mostra no iPod a lista de cantores que ouviu nos últimos dias: Ella Fitzgerald, Gal Costa, Maria Bethânia, Legião Urbana, Cristina Buarque, Tribalistas, Amália Rodrigues, Chico Buarque.

Perguntamos-lhe, a propósito, qual a cantora, ou cantor, por que se sente mais influenciada. Responde que há versões tão perfeitas de certos temas que, quando os canta, se sente próxima do intérprete original. “Dentro do meu canto há um pouco daquele cantor, mas às vezes pode ser só a vontade que tenho de que ele esteja, e ele se calhar não está”, brinca.

“No show com Caetano, canto ‘Tigreza’ com ele. É impossível cantar ‘Tigreza’ e não ouvir Gal Costa na minha cabeça, a gravação dela é linda. Uma cantora que acredito que me influenciou a querer cantar foi Fafá de Belém. Quando tinha seis anos de idade eu imitava a Fafá na sala de aula. Acabava a aula e eu ia para a frente da turma e imitava.”

A cor deste samba

A recordação, de repente, fá-la mudar de assunto. A expressão do rosto também muda. “Hoje, dando outra entrevista caiu a ficha: em criança, sempre fui muito extrovertida. Gostava de cantar, dançar, fazia piadas com a família, gostava de roupas coloridas. E o racismo no colégio tornou-me fechada, fiquei tímida. O plano inicial era para eu não ser tímida.”

[“O Mundo é um Moinho”]

O olhar fica mais distante. Teresa Cristina está certa de que “a timidez foi aparecendo na vida” por causa de “todas as atitudes racistas” de que foi alvo. “Hoje eu lido com isso com violência verbal, nunca cheguei à violência física, mas… Não tolero mais. Não admito que ninguém fale da cor da minha pele como se isso fosse mudar alguma coisa sobre o que a pessoa acha de mim. A pessoa pode achar qualquer coisa sobre mim, mas não use a cor da minha pele como justificação para gostar ou não de mim.”

Lembra episódios relativamente recentes, como quando o marido teve um problema de saúde e ela o levou ao hospital, tendo sido tratada pelo médico como empregada. O diagnóstico só o ficou a conhecer quando a sogra chegou. “Porque ela era de cor clara. Fiquei abalada com a situação.”

“Na rua, se chamo um táxi e ao mesmo tempo uma pessoa de cor mais clara também faz sinal, o táxi para para essa pessoa. Já fui a loja de roupa, cara, para escolher um vestido de show. Chego à loja, começo a ver, e a mulher pergunta para quem é o vestido. Aí eu falei que era para o meu pai. Saí da loja, chorei na rua, fiquei com raiva.”

Já em fim de conversa, a tarde a cair sobre Lisboa, a sambista confirma que a amizade com Caetano Veloso lhe tem sido valiosa em termos artísticos, até porque a mulher do cantor, Paula Lavigne, é empresária de Teresa. Conheceram-se há cerca de cinco anos, quando o cantor a convidou a participar num espetáculo.

“Ele fala comigo, diz que tenho um jeito muito diferente de cantar, mas queria que eu fosse mais ambiciosa nos gestos, que mostrasse mais dentro da música, além de cantar com a melodia e a letra certa, que colocasse alguma coisa minha na interpretação, para ser minha e não uma interpretação como outra qualquer”, pormenoriza.

“[O cantor] Lenine já tinha dito que eu preciso de criar uma personagem para trabalhar. Ele diz que quando o artista sobe ao palco e canta, quem canta é a personagem que o artista criou, que é ele também. Caetano foi além. Ele já entendeu que não vou criar essa personagem. Se não criei até agora, já não vou criar. Ele entendeu e falou: ‘Pensa nas pessoas que você admira’. Tento pensar a cada verso o que faria essa pessoa em palco. Faz muita diferença para mim.”

Por causa da timidez que foi ganhando na vida, Teresa Cristina tem uma relação difícil com o palco. “Até agora, subo com medo da plateia e com vergonha das luzes em cima de mim”, revela. E mais uma vez, introduz humor. “Para um tímido, a pior coisa do mundo é estar num canto e jogarem luz em cima, por amor de deus, é um pavor.” Mas não se pense nela como cantora atormentada, em sofrimento na hora dos concertos: “A aflição continua, mas já sei domar”.