Naquela manhã, os dedos das mãos de Gus Kenworthy estavam a tremer. E não, não era véspera de uma prova importante; como diria uns minutos depois, era tão somente o primeiro dia do resto da sua vida. Tinha à sua frente o aparelho com o botão Enter com que diria ao mundo aquilo que o mundo estava prestes a saber, mas estava com medo. Muito medo. Um medo que, após escrever e publicar a mensagem na sua conta nas redes sociais, se transformou num choro de alívio.

“Sou gay.

Wow, sabe bem escrever estas palavras. Durante grande parte da minha vida, tive medo de assumir a verdade sobre mim. No entanto, recentemente, cheguei ao ponto onde a dor de guardar uma mentira é maior do que o medo de soltá-la e estou muito orgulhoso de finalmente ter baixado a minha guarda (…) Sei que sou gay desde que sou miúdo, mas crescer numa cidade com 2.000 pessoas, uma turma de 48 miúdos e depois tornar-me atleta profissional aos 16 anos fez com que se tornasse algo que eu não quisesse aceitar. Deixei os meus sentimentos de lado com esperança de que fosse uma fase passageira, mas o pensamento de poder ser apanhado mantinha-me acordado à noite. Sentia-me ansioso, deprimido e até suicida.

Olhando para trás, é uma loucura ver até onde cheguei. Durante grande parte da minha vida temi o dia em que as pessoas descobrissem que era gay; agora, não podia estar mais entusiasmado com a verdade. Talvez suspeitassem da verdade sobre mim, talvez esteja a ser um completo choque. De qualquer forma, é importante para mim ser aberto e honesto com todos vocês (…) Parte da razão que tornou tão difíceis os meus tempos de miúdo foi não conhecer ninguém na minha posição e não ter ninguém para olhar, para seguir as pisadas. Espero ser essa pessoa para uma futura geração mais nova, ser um modelo de honestidade e transparência e mostrar que não existe nada melhor do que sermos nós próprios e aceitar o que nos faz únicos. Vão à ESPN.com ou cliquem no link da minha biografia para lerem toda a história e ponham os vossos olhos na edição de novembro que estará muito em breve nas bancas”.

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Estávamos em outubro de 2015 quando o esquiador americano assumiu a homossexualidade através de um artigo na ESPN, que escolheu a dedo. “Queria fazê-lo de uma vez por todas, com palavras minhas – e na esperança de poder ajudar miúdos que estejam na mesma posição que eu”, explicou. Até aí, ganhara três títulos consecutivos no AFP World Championship entre 2011 e 2013, uma medalha de bronze em slopestyle do esqui livre nos X Games e uma prata surpreendente nos Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi, também em slopestyle. Foi por essa conquista em Sochi, e por tudo aquilo que se seguiu, que a Rolling Stone descreveu o atleta americano como “a primeira estrela do desporto no ativo a assumir-se”. “Pensava que iria perder os meus principais patrocinadores e até foi ao contrário”, admitiu ao Sports Business Daily, que na reportagem que fez com o esquiador recordou os dez milhões de dólares que a tenista Martina Navratilova disse ter perdido após assumir-se, em 1981.

Nascido em Chelmsford, Inglaterra, filho de pai americano (Peter Kenworthy, antigo gerente de banco em Philadelphia que trabalhou muitos anos em Londres antes de se tornar diretor executivo do festival cinematográfico de Telluride) e de mãe inglesa (mudou-se para Londres nos anos 70, começando a trabalhar na parte cénica do Kings Head Theatre Club), Gus – que tem esse nome em homenagem ao realizador Gus Van Sant – tinha apenas dois anos quando se mudou com os dois irmãos mais velhos e os pais (que se separaram poucos anos depois) para o Colorado e aos três já começara a esquiar, sempre com o objetivo de aprender novas manobras que lhe permitissem superar os irmãos Hugh e Nick.

Vivendo numa comunidade pequena, tinha um quotidiano normal, como qualquer miúdo. Recorda-se que o primeiro CD que teve foi dos Gorillaz, seguindo-se o Let Go de Avril Lavigne e o Aaron’s Party de Aaron Carter, como contou à US Magazine. Fartava-se de ver originais da Disney, não perdeu mais tarde um episódio dos Forensic Files (e, mais recentemente, das 50 Sombras de Grey, que foi ver à sessão da meia noite no dia em que estrearam). Entre 2014 e 2015, teve um período de picos: ficou à beira do ouro olímpico num país com leis anti-LGBT (Rússia); deixou-se ficar mais uns dias em Sochi após os Jogos; pensou abandonar a carreira depois da frustração de acabar sem medalhas os X Games em Aspen, pouco depois.

Comecemos pelo ponto alto, em fevereiro de 2014: confirmando as boas expectativas que tinham sido abertas na qualificação, os Estados Unidos viram três dos seus quatro atletas subirem ao pódio na final do slopestyle, com Joss Christensen a conquistar o ouro, Gus Kenworthy a conseguir a prata e Nick Goepper a ficar com o bronze (Bobby Brown, o outro compatriota, acabou no nono lugar). No entanto, nem tudo foram facilidades em Sochi: como contou no ano passado à Esquire, o americano teve grandes dificuldades em conviver com o facto de estar num país com leis anti-gay e não poder sequer comentar o facto, como gostava. “Era um peso na minha consciência todo o tempo e sentia-me mal. Nem cheguei a apreciar bem a medalha com tudo o que passava pela minha cabeça”, contou, explicando também que todos os atletas tinham sido recomendados pelo Comité Olímpico dos Estados Unidos a não falar sobre isso, sob pena de verem a participação em perigo.

Parte desportiva e medalha à parte, Gus não conseguiu ganhar essa “luta” onde estava proibido de participar, mas levou a melhor numa outra: amante de animais, o americano encontrou quatro cães ainda bebés (e a mãe) à volta da zona do Parque Olímpico e começou aí uma aventura legal para conseguir voltar com os mesmos aos Estados Unidos. Ficou na Rússia mais tempo do que os restantes companheiros, andou a mexer “cordelinhos” onde podia (com a ajuda preciosa da Humane Society International e Robin McDonald, namorado de Gus, na altura, que estava em Sochi como repórter fotográfico), e alcançou mesmo esse objetivo, num gesto que foi ainda mais elogiado no contexto que havia (e era conhecido) nessa altura: caso não tivessem sido resgatados, os animais seriam abatidos por uma empresa contratada pelo governo local para “limpar” essas ruas, com a justificação de que se tratava de uma questão de problema de saúde pública. Um dos cachorros acabou por morrer pouco tempo depois de chegar aos Estados Unidos, os outros estão bem e dois continuam a viver com o atleta.

E o gesto teve de tal forma impacto que, além de passar a juntar-se com mais assiduidade a tudo o que fossem campanhas de adopção de cães (criou também um Instagram dos Sochi Pups), fez capa de uma revista com essas suas “medalhas”.

Uns meses depois, Gus Kenworthy pensou em deixar de competir. Após a prata conquistada em Sochi aos 22 anos, considerou que poderia elevar a fasquia e ganhar o ouro nos X Games seguintes, em Aspen, para onde partiu com a ambição de vencer as provas de superpipe e slopestyle. Acabou em quinto e sétimo, respetivamente. Sentiu-se frustrado, no plano desportivo, e deprimido em termos pessoais, por ter terminado nessa altura a relação “escondida” que há cinco anos mantinha com McDonald. Estava cansado de não ser honesto consigo próprio. O pai e o seu agente, Michael Spencer, conseguiram demovê-lo.

Nesse mesmo ano, o americano ganhou a World Cup Halfpipe em Utah (triunfo que repetiria no ano seguinte) e, em 2016, teve uma prestação completamente diferente nos X Games, ganhando a medalha de prata em superpipe e slopestyle. Passou a olhar para as competições de outra forma, andava feliz na vida. O que se passou pelo meio? O supracitado artigo na ESPN, onde assumiu a sua homossexualidade. Tudo mudou na sua vida a partir desse momento.

Em PyeongChang, Gus Kenworthy não era propriamente favorito a uma medalha, mas o sétimo lugar na qualificação com 90.80 deixava em aberto a possibilidade de repetir o pódio de Sochi, o que acabou por não acontecer: a recuperar de uma fratura num osso da mão sofrida num treino, teve uma prestação que dificilmente poderia ter corrido pior e terminou a final no 12.º e último lugar (as medalhas foram para o norueguês Oystein Braten, para o compatriota Nick Goepper e para o canadiano Alex Beaulieu-Marchand), mas nem por isso mereceu menos destaque da imprensa.

No final da prova, e sem se aperceber que estava a ser filmado, Gus beijou em direto na NBC com a maior das naturalidades o atual namorado, o ator e apresentador Matthew Wilkas, naquele que ficou como um dos momentos mais marcantes da edição de 2018. “Esta é a verdadeira experiência olímpica que esperava. Saio daqui mais realizado sem medalha do que quando ganhei a prata nos últimos Jogos”, referiu Kenworthy à CNN a propósito desse momento. “Não é muito normal, certo? Mas é bom que tenha aparecido na TV porque pode ser que normalize um pouco mais as coisas. Imaginava que seria um grande momento para uma criança gay ver um fabuloso atleta ser tão aberto e orgulhoso de si próprio, sem ligar ao que os outros acham sobre a sua sexualidade”, comentou Wilkas à revista Time, ao mesmo tempo que admitiu que todo o ruído gerado em torno do esquiador acabou por condicionar, e muito, a sua prestação na Coreia do Sul.

É que, ainda antes da prova, o atleta deixou uma “farpa” a Mike Pence, vice-presidente dos Estados Unidos, que sempre votou contra o casamento gay; contra leis de combate à discriminação de homossexuais, enquanto esteve no Congresso, e que iria representar o país na cerimónia de abertura dos Jogos. “Parti o meu polegar ontem no treino. Não vai fazer com que deixe de competir (óbvio) mas previne-me de apertar a mão de Pence”, escreveu na sua conta oficial do Twitter, numa alusão que provocou muitos comentários contra e a favor. No final dos Jogos, o alvo passou a ser Ivanka Trump, filha do presidente dos Estados Unidos: “Tanto orgulho nestas pessoas! Todos eles trabalharam muito para poderem chegar aos Jogos e estarão agora na cerimónia de encerramento. Bem, todos menos a Ivanka… O que é que ela está aqui a fazer?”.

O ênfase político que Gus Kenworthy (e Adam Rippon, da patinagem artística) colocou em termos públicos no início e no final dos Jogos propiciou muitas reações contra e a favor da tomada de posição, mas a história de Sochi voltou a repetir-se e o atleta voltou a ser notícia esta terça-feira por estar a tentar resgatar 90 cães da Coreia do Sul, como conta a Fox News.

Através de uma longa publicação no Instagram, no seguimento da visita a uma das 17 mil fazendas de criação de cães, o americano explicou que não é sua intenção intrometer-se na cultura coreana de comer carne de cão, mas denunciou as condições desumanas em que muitos dos mais de dois milhões de cães criados para alimentação se encontram ou são abatidos. “Apesar de todas as crenças das pessoas coreanas em geral, há cães que não são diferentes daquilo que chamamos de animal de estimação, até porque alguns eram mesmo isso e foram roubados, encontrados ou vendidos para comércio de carne”, escreveu. “Como esta fazenda em específico vai ser fechada devido ao trabalho da Humane Society International e à cooperação do agricultor que lá estava, todos estes 90 cães serão trazidos para os Estados Unidos e para o Canadá para terem as suas ‘casas’. Eu já adoptei esta doce, que chamámos de Beemo. Estou ansioso por lhe dar a melhor vida possível, mas ainda há milhões de cães aqui que precisam de ajuda”, acrescentou, com a respetiva fotografia da cadela que levará agora para sua casa.

Como serão os Jogos daqui a 20 anos?, perguntaram ao esquiador no final da edição de PyeongChang. “Espero que o facto de sermos atletas gays não seja sequer assunto”, resumiu, citado pelo Washington Post. “Qualquer pessoa poderá ser o que é. E as pessoas estão cada vez mais a perceber isso mesmo”, acrescentou. É assim que Gus Kenworthy, entre o amor incondicional por animais, vai ganhando o seu espaço como figura nos Estados Unidos. É assim que já é mais do que um atleta.