Tudo em torno da carreira e das criações de Martin Margiela é singular. Até 15 de julho, no Palais Galliera, em Paris, a exposição “Margiela/Galliera, 1989-2009” deixa isso claro, do princípio ao fim. Vinte anos depois de ter criado a marca homónima, Martin Margiela retirou-se. A figura permanece envolta em mistério — poucas entrevistas, ainda menos fotografias e uma relutância em percorrer a passerelle no final dos desfiles. Era o trabalho que importava, não a figura do criador. Na exposição, que inaugurou no início de março, é o próprio quem assume a direção criativa. Através de vídeos, recortes de imprensa, instalações, peças de arquivo e mais de 100 coordenados são percorridas as duas décadas em que esteve à frente da maison Margiela. Pelo meio, entre 1997 e 2003, foi também diretor criativo da Hermès.

O designer não foi só o único belga da sua geração a fundar uma maison em Paris, foi disruptivo e desconstrutor, expressões que, depois dele, nunca mais deveriam ser usadas em vão. Tento na língua e na forma de olhar para a moda. Margiela evidenciou, como poucos no século XX foram capazes, a estreita relação entre roupa e arte. Foi a fundo quando explorou essa fronteira, fundiu as duas áreas numa completa promiscuidade e regressou para adaptar este processo ao vestuário do dia a dia.

Botas tabi, 1991 © Françoise Cochennec/Galliera/Roger-Viollet

“Foi realmente um choque para toda a gente ver as primeiras silhuetas de Margiela… percebias que ele estava muito mais à frente do que qualquer outra pessoa”, afirmou o designer Bob Verhelst à revista Icon, em 2009, ao falar sobre o primeiro desfile do criador, em outubro de 1988. Foi no Café de la Gare, em Paris, e a cidade e o mundo gravaram o momento na memória. O ambiente underground contrastava com o fausto das grandes apresentações da semana da moda. As modelos deixavam pegadas de tinta numa faixa de tecido branco que cobria a passerelle, pegadas essas que não tinham uma forma qualquer. Para o verão de 1989, a sua coleção de estreia, Margiela desenhou as botas tabi, que permanecem até hoje como ex-líbris da marca. Outra peça que deu nas vistas: uma camisola transparente, em poliamida, estampada com tatuagens polinésias. Os anos 90 ainda não tinham chegado e o designer belga já antecipava as silhuetas que se viriam a celebrizar anos mais tarde. A assistência vibrou.

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“Estava sentado ao lado da [designer] Marina Yee, uma amiga muito chegada do Martin nessa altura, e ela reconheceu-se nas silhuetas e começou a chorar. Tinha-a nos meus braços e, depois de três ou quatro looks, comecei a perceber. Aquilo era completamente diferente do que estava a ser feito naquele momento; era tão forte e arrojado que, quando foi lançado, quisemos comprar imediatamente”, relatou o empresário belga Geert Bruloot à revista AnOther, em 2015.  A assistir ao desfile esteve também Jean Paul Gaultier, de quem Margiela fora assistente anos antes. “Já sabia que ele era bom, mas não tinha percebido a dimensão”, admitiu o designer na altura.

Desfile da coleção primavera-verão 2009, em Paris, a última desenhada por Martin Margiela © François Guillot/AFP/Getty Images

Na segunda coleção, outono-inverno 1989/90, Margiela vai mais longe e mostra que não há materiais proibidos. Trabalhou cortiça, fita-cola castanha, metal e até cacos de pratos. Nas estações seguintes, o criador só fez aumentar esta lista. Chegou a usar cartazes publicitários do metro de Paris (primavera-verão 1990), a amarfanhar peças delicadas dentro de grandes botas de borracha (outono-inverno 1990/91) e a construir uma coleção a partir de lenços usados (primavera-verão 1992). Em 1998, desenhou a primeira coleção masculina, embora os cortes rígidos da alfaiataria tivessem sido sempre uma constante no seu trabalho.

Mas Margiela introduziu também uma nova volumetria no guarda-roupa, aquilo a que hoje chamamos oversize. A exposição segue uma organização cronológica, especialmente útil para perceber a evolução do designer na construção das peças e coordenados dos desfiles. Chegamos à coleção outono-inverno 1992/93, um núcleo que abre com um busto americano equivalente a um XXXXL. O criador começa a explorar as peças extra largas e a abrir caminho para outras experiências — em 1996, Margiela fotografou várias peças, estampou os negativos em tecidos leves e fluidos e deu-lhes volume e estrutura através do realismo pictórico; dois anos depois, explorou a bidimensionalidade do vestuário; na coleção outono-inverno 1999/2000, o primeiro casaco edredom, e, no verão de 2009, os casacos feitos de cabelo sintético.

Os desfiles de Martin Margiela nunca deixaram de ser provocadores. Pôs as modelos a desfilarem no meio do público (1995), em cima das mesas de um café (1996), vendadas e plastificadas (1998) e, nesse mesmo ano, ausentes, substituídas por cabides banais, exibidos por homens de bata branca. Na coleção primavera-verão 2006, algumas das modelos nem desfilaram. Limitaram-se a deslizar sobre a passarelle em plataformas com rodas, empurradas por assistentes. Um triunfo cénico que marcou a saída do designer fundador.

Casaco de cabelo sintético, 2009 © Stéphane Piera / Galliera / Roger-Viollet

Em 2012, a marca foi a escolha da H&M para a coleção anual de edição limitada. Na verdade, as peças revisitaram o percurso do criador belga — foram desenhados casacos edredom, bodies com soutiens estampados e blusões feitos de cintos. A Maison Margiela, detida pelo grupo OTB desde 2002 (a mesma empresa que é dona das marcas Diesel, Marni e Viktor & Rolf), permaneceu sem diretor criativo até 2014. Nesse ano, John Galliano ocupou o cargo. Numa rara entrevista dada ao The Times, em 2016, Galliano falou sobre a chegada à maison e sobre o seu encontro com Margiela. “John, leva o que quiseres do ADN da marca, protege-te e faz isto à tua maneira” foram as palavras do fundador, hoje com 60 anos, para o seu sucessor.

“Margiela/Galliera, 1989-2009″ faz parte do programa Saison Margiela 2018 à Paris, que inclui também a exposição “Margiela les années Hermès”, no Museu de Artes Decorativas. Depois de ter passado por Antuérpia, no ano passado, fica em Paris até 2 de setembro.

A exposição “Margiela/Galliera, 1989-2009” pode ser vista até 15 de julho no Palais Galliera em Paris, de terça-feira a domingo, das 10h às 18h (quintas-feiras, até às 21h). O bilhete custa 10€.