Título: “Nados líquidos: Transformações do Terceiro Milénio”
Autores: Zygmunt Bauman & Thomas Leoncini
Editora: Relógio D’Água

Zygmunt Bauman (1925-2017) teve a fortuna de cunhar um conceito – o de “modernidade líquida” – que caiu no goto dos media e do público não-especializado e lhe valeu o inusitado estatuto de pop star da sociologia. Tal como acontece com as pop stars, a sua morte, ocorrida em Janeiro de 2017, não significa o fim das suas edições: há sempre lost albums, alternate takes, demos, jam sessions, bootlegs e remastered editions para satisfazer o apetite dos fãs por mais um opus do desaparecido.

Nados líquidos insere-se nesta lógica de reaproveitamento das rebarbas de fita que foram deixadas no caixote do lixo do estúdio de gravação: verte em texto um “diálogo” entre o mestre e Thomas Leoncini, um seu discípulo italiano, 60 anos mais novo, versando assuntos que são particularmente pertinentes para a “geração surgida nos anos 80, ou seja, [os] que já nasceram numa sociedade líquida em permanente mudança”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O programa do capítulo I, “Transformações na pele”, é aliciante – tatuagens, barbas hipster, cirurgia plástica – e tem tiradas pertinentes quando sugere que sob o acto de suposta afirmação pessoal e rebeldia contra a dissolução na massa anónima que é fazer uma tatuagem ou um piercing há uma submissão aos ditames da sociedade de consumo:

“A cultura contemporânea da sociedade de consumo é comandada pelo princípio ‘se podes fazê-lo, deves fazê-lo’. […] A economia consumista prospera […] graças ao mágico estratagema de converter a possibilidade em obrigação, ou, fazendo uso do léxico dos economistas, a oferta em procura”.

Leoncini faz passar a informação de que nos EUA, 47% dos millennials e 36% dos membros da Geração X têm pelo menos uma tatuagem, mas seria relevante, para aprofundar o raciocínio, conhecer também como tem evoluído o número de pessoas com múltiplas tatuagens. É que a mesma lógica consumista impõe que, se a tatuagem se tornou corriqueira, ela deixa de conferir um status distinto, pelo que há que fazer outra e outra ainda quando duas tatuagens se tiverem também vulgarizado, e assim sucessivamente. Porém, “aprofundar o raciocínio” é algo em que nem Bauman nem Leoncini parecem estar interessados, preferindo borboletear de assunto em assunto.

O capítulo II versa o bullying e o III, que tem por título “Transformações sexuais e amorosas: Decadência dos tabus na era do e-commerce sentimental” acaba por ser absurdamente ambicioso, ao querer discutir ao mesmo tempo, as mudanças que o mundo digital trouxe ao amor, sexo, trabalho e relações pessoais.

O diálogo tem trechos reveladores, como aquele que narra uma experiência de psicologia realizada por Philip Zimbardo (que também conduziu, em 1971, o célebre Stanford Prison Experiment) em que “um grupo de raparigas estudantes [envergou] capuzes e mantos como os da Ku Kux Klan” e outro grupo não vestiu nada de particular; quando se “pediu a ambos os grupos que aplicassem uma descarga eléctrica a outra pessoa […] as raparigas encapuzadas pressionaram o botão que comandava a descarga o dobro do tempo das que tinham o rosto descoberto” – uma demonstração cabal do acréscimo de crueldade e indiferença pelo sofrimento alheio (e da concomitante diminuição da empatia) proporcionado pelo anonimato e que é uma característica marcante das interacções nas redes sociais.

Bauman conclui que a “segunda vida” que a Internet prometia é, afinal, “um mundo de cyberbullying e difamação” e que “em vez de servir a causa de aumentar a qualidade da integração humana, da compreensão, cooperação e solidariedade recíprocas, a web facilitou práticas de isolamento (enclosure), separação, exclusão, inimizade e conflituosidade”.

Porém, para obter estas pepitas de sabedoria é necessário peneirar muitas páginas tão dispersas e inconsequentes como uma amena cavaqueira à mesa de um café.