“Se alguém explodir aqui uma bomba, lá se vai a maior parte da gastronomia mundial”, dizia um rapaz de fato, encostado a uma banca cheia de flutes de champanhe vazias. Olhando para todo o cenário que tinha sido montado no Euskalduna Jauregia Bilbao — uma espécie de Centro Cultural de Belém basco, mas em maior e muito melhor –, não era difícil perceber que o mundo da gastronomia estava (quase) todo na grande gala do The World’s 50 Best Restaurants, o evento que todos os anos apresenta uma listagem dos melhores sítios do mundo onde se pode comer.

A grande cerimónia pode ter sido o momento que mais atenção chamou nos últimos dias, mas a verdade é que o “programa 50 Best” tinha começado bem antes. Houve a programação oficial, claro, onde se incluiu as palestras 50 Best Talks e o debate Arte and Flavours, por exemplo, mas houve também outro roteiro mais “paralelo”. A vida de cozinha é de uma dureza e absorção quase absoluta, é difícil ter tempo livre ou vida social/familiar ativa quando se tem a responsabilidade de alimentar dezenas de pessoas todos os dias e é por isso que eventos como este são uma ótima oportunidade para reencontrar amigos e colegas, a hipótese de conhecer o trabalho de outros chefs ou, quiçá, lançar, a semente de um novo negócio ou parceria. Os cozinheiros e suas equipas sabem disso e aproveitam estes momentos para por tudo em dia, para se divertirem, e por isso não perdem tempo ao combinar constantes jantares, almoços ou copos, depois das obrigações mais oficiais. É quase como se fosse umas férias. Ao navegar pelo turbilhão de cores, música, cheiros e comida que se sentia no cocktail antes da aguardada gala deu para assistir a tudo isso, a essa vontade de aproveitar ao máximo. Independentemente dos prémios ou distinções, toda a gente estava ali para celebrar.

A noite começou cedo (ao contrário do que é tradição entre nuestros hermanos) e por volta das 18h já havia uma fila enorme de pessoas muito bem vestidas. “Despacha-te que não quero perder nada”, atirou uma jovem ao rapaz que a acompanhava. Ultrapassado o controlo de entradas, depois de atravessar o mar de fotógrafos que insistia em pedir que todos sorrissem para eles, via-se o átrio enorme onde se comeria (pouco) e beberia qualquer coisa antes do evento começar. Bancas de gin, vinho, champanhe ou uísque conviviam paredes meias com pequenos pontos onde se podia provar queijos, presunto ou até umas sanduíches de rabo de boi (que estavam deliciosas). Depois de umas duas horas de convívio, chegava o aviso de que o grande momento ia começar: de barriga vazia mas de copo cheio seguimos para o auditório sem saber bem o que esperar.

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Estava tudo pronto e organizado quando as primeiras pessoas começaram a entrar na sala gigantesca, toda em madeira clara, onde seria feito o anuncio do 50 Best. Uma equipa de jovens colaboradores, vestidos a rigor, ia indicando encaminhando os convidados para os seus lugares e em todo o lado já se comentava sobre como seria o pódio desta listagem. Uns apostavam que o Mirazur, do chef Mauro Colagreco (um dos mais divertidos e efusivos cozinheiros), ia chegar ao topo, outros juravam que seria o Asador Etxebarri (com o chef Víctor Arguinzoniz sempre fiel à sua simplicidade) e a grande maioria dizia que os lugares cimeiros seriam disputados entre os irmãos Roca e Bottura — tal como aconteceu. “Ou é o Celler ou a Osteria, aposto!”, afirmou uma senhora que se sentou a umas cadeiras de distância do Observador. Quando as luzes da sala baixaram e tudo estava pronto, passou a faltar ainda menos para se chegar ao veredicto.

Algoritmos, ciência e boas vidas: afinal, como se avalia a melhor comida do mundo?

Solenidade: foi isso mesmo que se sentiu logo no início da gala quando o apresentador — que tinha começado de forma muito animada a pedir desculpa por ser um inglês o anfitrião do evento e não o “Enrique Iglesias, o Julio Iglesias ou a Penélope Cruz” — pediu que se fizesse silêncio e que se recordasse as três grandes figuras da gastronomia que morreram no último ano: Anthony Bourdain, Gualtiero Marchesi e Paul Bocuse. “Sem o trabalho deles, o vosso e o nosso seriam muito mais difíceis”, terminou. Todos aplaudiram, muitos fizeram-no de pé, e logo a seguir prosseguiu a festa. A um ritmo acelerado iam se entregando prémios a torto e a direito: primeiro foi a nova bolsa de estudo dedicada a jovens cozinheiros que caiu nas mãos de uma jovem taiwanesa (a escolhida entre mais de 1000 candidaturas) que irá estagiar no Mugaritz e no Atelier Crenn. O casal Kyle e Katina Connaughton, do restaurante Single Thread, foram os próximos a ir ao palco, para receberem o prémio jovem promessa. O norte-americano Dan Barber também teve o seu momento quando foi anunciado que tinha ganho o prémio Chef of Chef’s, distinção que é votada só por cozinheiros. Todas estas atribuições iam servindo como limpa palato (utilizando a gíria gastronómica), já que surgiam intercalados entre o anuncio das posições da lista, que eram feitas de forma decrescente.

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Pequena descrição do restaurante, grande plano do chef e palmas: era esta a fórmula que se repetia sempre aquando do anúncio de uma nova posição. Segundo o 50 Best, esta cerimónia de Bilbao foi a maior de sempre mas também uma das mais concorridas, contando-se a presença de 49 dos 50 da lista. A única ausência notou-se quando o restaurante D.O.M. foi anunciado (está na 30ª posição, em 2017 estava na 16ª) e Alexa Atala não apareceu no ecrã gigante e sentiu-se algum desconforto na sala, até porque há rumores de que o paulistano entrou em rota de colisão com o 50 Best. Contudo, momentos antes, o ambiente na sala foi bem diferente quando se deu a entrega do prémio de melhor chef femenina à britânica Clare Smyth.

A dominação masculina que se vê na lista — a primeira mulher a aparecer se contarmos do número um para baixo é a líder do restaurante Cosme, em Nova Iorque, Daniela Soto-Innes, que está na 25ª posição — é algo que é muito discutido desde sempre. Apesar de muitos considerarem esta realidade como algo normal, já que é um pouco o espelho daquilo que se vive no mundo das cozinhas, há quem ache o contrário — ou pelo menos quem defenda que isso deve mudar. A chef Smyth provou ser uma delas ao frisar, no seu discurso de aceitação do prémio, que “é preciso mudar”, “perceber porque é que existem tão poucas mulheres na cozinha” e “lutar para que as coisas fiquem melhores, mais inclusivas, respeitadoras e abertas”. Toda a gente aplaudiu de forma efusiva.

The World’s 50 Best Restaurants 2018. Osteria Francescana é o novo melhor restaurante do mundo

“Pedimo-vos que tentem manter a calma: estamos a chegar à parte da cerimónia em que toda a gente se passa da cabeça”, avisou o apresentador. Chegávamos ao pódio e sentia-se o nervosismo no ar, especialmente porque já se tinha percebido que ia haver um novo primeiro lugar, já que o anterior, o Eleven Madison Park, tinha caído para a quarta posição. “Este restaurante fica em Monton e é um dos que mais tem evoluído nos últimos tempos” — assim que se ouviram estas palavras, Mauro Colagreco e a sua animada comitiva explodiram em abraços e gritos de vitória: tinham acabado de subir uma posição em comparação com a lista anterior. Quando chegou a altura de anunciar o segundo classificado e o cicerone da noite mencionou a palavra “irmão”, a grande dúvida foi revelada (o El Celler de Can Roca, segundo classificado, é liderado pelos irmãos Joan Jordi e Josep Roca) — Massimo Bottura voltava a atingir o Olimpo.

A confusão instalou-se, houve uma mini-invasão de palco e as maquinas fotográficas e telemóveis entraram em ação. Por todo o lado ouvia-se a palavra “Parabéns” dita em mil e um idiomas (assistiam ao evento pessoas de Epanha, EUA, Portugal, Tailândia, Japão, Singapura, Alemanha, …) e nunca deve ter havido uma concentração tão grande de pessoas abraçadas umas às outras. Massimo — que não largou a mulher, Laura, por um segundo — resplandecia, parecia uma criança que tinha acabado de ganhar o torneio de futebol da escola. O power couple deu um enorme beijo e Bottura fugiu para a conferência de imprensa.

Vestido como se fosse tivesse acabado de sair da romana Cinecittà na década de 70/80, o líder da Osteria respondeu a tudo emais alguma coisa, tirou fotos com toda a gente, deu beijos, abraços, tudo: até revelou o seu espanto quando há poucos dias o mítico Henry Kissinger lhe pediu que tirasse uma selfie com ele. “O que vai fazer agora, Massimo?”, perguntou um jornalista inglês. “Vou para a festa, claro! E vocês vêm todos comigo!”, respondeu. Como ordem de chef não pode ser ignorada, toda a gente acedeu e seguiu para aquilo a que a organização chamou de after-after-party.

A animação já se sentia no autocarro que a organização cedeu para transportar os convidados para a tal festa, que ia realizar-se no estádio San Mamés, a casa do Athletic de Bilbao. “Acham que a festa vai ser no relvado?”, perguntava uma rapariga. A dúvida era interessante, mas durou pouco tempo: “Não, vamos para os camarotes vip!”, respondeu-lhe uma amiga. O estádio estava todo iluminado, vídeos com a cara dos vencedores eram exibidos em tamanho XXXXXL e toda a gente ficou de boca aberta, especialmente quando se entrou no edifício e percebeu-se que o clube tinha feito uma camisola para cada um dos restaurantes da lista, personalizada com o nome do espaço e a posição que ocupa na lista. “Isto é a melhor ideia de sempre”, comentou um cozinheiro do dinamarquês do restaurante Geranium.

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Iluminado com focos azuis, vermelhos e brancos, a zona da festa já fervilhava quando o Observador a viu pela primeira vez. Carrinhos de mão com presunto ficavam lado a lado com stands de cerveja e um palco generoso onde uma banda de covers ia tocando grandes êxitos dos anos 80. A pista já tinha sido inaugurada mas quando se começou a ouvir o início da lambada, a célebre música do grupo Kaoma, toda a gente perdeu a cabeça. “É a minha música!”, gritou um rapaz. Todos começaram a abanar a anca, a rodopiar e a cantar. Já quase no final da canção, Bottura passeou pela pista levado nos ombros de colegas, enquanto Laura, a sua mulher, dançava de forma inspirada e com um sorriso na cara. “Quero ficar aqui para sempre!”, comentou um cozinheiro espanhol. Não foi possível satisfazer o seu pedido, claro, mas pelo menos fica com uma memória que seguramente nunca irá desaparecer.