Lara Croft tornou-se numa personagem indiscutível no imaginário pop mundial, desde 1996. Não precisamos de ser fãs do jogo ou de jogos no geral para reconhecer a figura da jovem exploradora britânica. Aquando do lançamento de Tomb Raider, há mais de 20 anos, provavelmente ninguém na Core Design ou na Eidos sonhava com as proporções que a sua criação tomaria a partir daí e de como a obra, tão brilhante na altura, abriria uma das franquias mais conhecidas do mundo dos videojogos. Agora, com o lançamento de Shadow of the Tomb Raider, olhamos não só para esta mais recente aventura mas também para parte da história de Lara Croft e daa sua lenda.

Há uma história por detrás de Lara Croft, ou melhor, há várias histórias sobre ela, que variam dependendo da plataforma em questão. Nos videojogos, existem duas séries de jogos: a original e o reboot, do qual Shadow of the Tomb Raider faz parte. Há dois filmes que têm Angelina Jolie como protagonista e um mais recente, baseado no reboot, com Alicia Vikander no papel principal. A isto, ainda juntamos banda desenhada, romances e até uma pequena série de animação para TV, que foi cancelada por ter tido pouco sucesso.

Quando Lara é apresentada no jogo original, depois de um pequeno treino no ginásio da mansão da família Croft (para que o jogador se habitue aos movimentos de jogabilidade novos), somos colocados numa missão em que Lara é já uma aventureira/arqueóloga famosa. Neste ponto, ela já é uma ginasta magnífica, atiradora exímia com vários tipos de armas de fogo e possuidora de um conhecimento sobre História e misticismo que rivaliza o de vários professores catedráticos combinados. É por isso que, para nós, é fácil aceitar a ideia de que esta jovem é capaz de matar lobos ou dinossauros, escalar paredes, resolver enigmas e encontrar artefactos históricos e místicos.

Curiosamente, muito antes de existirem os atuais movimentos pela igualdade de género, Lara Croft, a par de Samus Aran, eram pioneiras no mundo dos videojogos e, apesar de Lady Croft ter sido “marketizada” como objeto de fantasia sexual para os rapazes, acredito que muitos rapidamente olhavam para lá disso e viam-na como uma heroína ao nível de qualquer um dos seus congéneres masculinos da altura. Lara Croft era mais do que a bomba de seios pontiagudos poligonais, foco de desejo pubescente. Era uma temerária que conseguiu quebrar a barreira da ilusão de que rapazes não iam gostar de controlar um personagem feminino ou identificar-se com ela.

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Foi ao longo de seis jogos que, com menores níveis de sucesso a partir do terceiro, fomos conhecendo esta personagem. Mesmo com bastante exposição através dos enredos de cada jogo, nunca soubemos realmente quem ela era no seu âmago. Além de sabermos que era herdeira de um Lord inglês e mais algumas coisas superficiais, não sabíamos mais nada a fundo. Tudo isso mudou quando em 2013 decidiram fazer um reboot de Tomb Raider, que apesar de criticado no anúncio, acabou por ser posteriormente elogiado tanto pela crítica como pelo público

O TombRaider de 2013 não foi a Square Enix (que tinha comprado a Eidos e as suas propriedades intelectuais uns anos antes) a tentar fazer dinheiro fácil, lançando uma remasterização do jogo original com umas pequenas alterações. Esta edição de 2013 foi uma recriação total do mythos de Lara Croft. Este novo jogo, apesar de tentar ser diferente, respeitou sempre o original porque sabemos para onde vai a narrativa, como se fosse uma espécie de prequela deslocada no tempo. Este jogo era diferente em vários aspetos, muito por causa dos efeitos dos avanços na tecnologia e das mecânicas de jogabilidade mais modernas e, principalmente, no setting e enredo. Aqui, o primeiro choque que tivemos foi o facto de não controlarmos uma heroína no seu auge, mas uma rapariga insegura, que tinha um caminho longo, sinuoso e doloroso a percorrer na vida. O que nos colocaram “nas mãos” foi uma Lara inexperiente que precisava de aprender a sobreviver, que sofria, aleijava-se, sangrava, tinha medos e dúvida. Uma Lara modernizada mas acima de tudo humanizada que um dia seria um espelho da mítica heroína dos finais dos anos 1990, adaptada ao novo século.

Tomb Raider (2013) e posteriormente Rise of the Tomb Raider (2015) foram a nossa janela para essa construção de Lara Croft, uma formação guiada por nós e que chega agora a um ponto mais crucial em Shadow of the Tomb Raider. Enquanto que, em Tomb Raider, temos uma Lara que vai gradualmente aprendendo a sobreviver, levando ao máximo as capacidades físicas e também psicológicas, também temos o acender da chama, que dará luz a todo o seu futuro. É quando ela descobre que alguns elementos místicos do mundo são, afinal, reais que ela traça o objetivo de encontrar mais e de os mostrar à população geral.

Em Rise, um ano depois dos acontecimentos do jogo original, Lara já está mais formada, não só fisicamente mas também na sua personalidade e história pessoal, o enredo adensa-se, há mais personagens, amigos e adversários numa evolução natural não só do reboot mas de toda a saga desde a sua origem. Lara deixa de ser a personagem unidimensional dos jogos originais e também do jogo de 2013, e começa a ter nuances cada vez mais relevantes para as suas ações. Não sabemos quanto tempo passou desde os acontecimentos finais de Rise até ao início de Shadow of the Tomb Raider, mas vemos logo que Lara está mais evoluída como exploradora, não muito longe do que será o seu pico. Mas, não havendo muito por onde ir nos aspetos físicos, há muito por onde divagar nos psicológicos.

Na base, Shadow of the Tomb Raider não tem uma evolução escandalosa no que diz respeito aos antecessores. Depois de um tutorial que nos apresenta o novelo de mistério e de misticismo que vamos desenrolar ao longo das várias horas de jogo, passamos pela já clássica estrutura de poder: utilizar todas as nossas ferramentas. Quando essas ferramentas nos são tiradas temos de conseguir que Lara sobreviva nas condições mais agrestes possíveis, mais uma vez. A nossa tarefa consiste em guiá-la, encontrar e recolher não só objetos como elementos com os quais ela pode construir tudo o que é necessário para completar a sua aventura. Mais uma vez, será necessário ervas para poções, paus e penas para fazer flechas, caçar animais para retirar as peles para upgrades de roupas e objetos. Os cenários são brilhantes, desenhados com um pormenor incrível da gruta mais escura à floresta mais densa, passando por vilas e cidades.

Se existe uma crítica que posso levantar na parte mais técnica do jogo é a sua estrutura linear quase “por carris”. Enquanto não esperava algo como os open-world mais extensos da atualidade (como o recente Marvel’s Spider-Man), sendo fã da série desde a origem, há muito que desejo uma abertura maior na resolução de puzzles ou. simplesmente, de caminhos a seguir como no Breath of the Wild. Em Shadow of the Tomb Raider, temos apenas uma solução para cada enigma, apenas um caminho para chegar ao ponto que queremos — tentar fugir a esse caminho implica, simplesmente, a morte repetida da protagonista. Apesar de toda a beleza e profundidade, mesmo quando chegamos à cidade principal do jogo, e tanto a quest principal como as side quests são mais expansivas, a cidade não deixa de ser mais do mesmo. Encontrar uma inscrição com instruções ou saliência para trepar, ativar algo, seguir em frente, para o seguinte e repetir de uma forma ou num cenário ligeiramente diferente.

Há algumas alterações neste Shadow of the Tomb Raider que dão mais profundidade à jogabilidade como a possibilidade de Lara poder cobrir-se de lama para se esconder dos inimigos e, mais facilmente, poder eliminá-los com ataques furtivos, deixando atrás de si um enorme rastro de corpos e sangue, poder descer algumas paredes e correr na sua face apoiada numa corda para chegar a alguns locais, mas a melhor característica deste novo título é também a mais subtil — a possibilidade de colocar o jogo no chamado “modo imersivo”, que coloca os personagens locais a falar a língua local. Até agora, independentemente do um jogo se passar no Japão, Rússia, ou outro local qualquer todos os personagens falavam inglês, com o modo imersivo isso já não acontece. No meio de uma povoação local todas as vozes falam dialetos locais. É mais um pormenor estético que outra coisa já que não dificulta a jogabilidade mas permite que o jogador entre mais profundamente no mundo virtual.

A capacidade de imersão é um ponto muito importante em toda a série, mas em particular neste último jogo. Não querendo estragar a experiência de cada jogador, é importante frisar que grande parte do jogo é focado na protagonista enquanto pessoa e não apenas enquanto heroína da série, através de conversas, flashbacks, e os desabafos que faz sentada na fogueira de um abrigo. É focado não só nela, mas em todos os que partilham do seu trabalho.

Além de aventureira, Lara é principalmente uma arqueóloga e, por mais romantizada que essa profissão tenha sido na cultura popular, há uma vertente real e com consequências do que é feito. Nas aventuras originais, Lara explorava tumbas, recuperava itens e salvava o mundo de algum tipo de apocalipse místico, quase sempre sozinha ou interagindo apenas com os seus inimigos da altura. Em Shadow of the Tomb Raider, Lara interage com populações locais (algo que ela própria admite não gostar de fazer nos primeiros minutos do jogo) e, em várias situações, é obrigada a confrontar-se com as consequências dos seus atos.

São várias as ocasiões em que vamos olhar para Lara e duvidar se ela é realmente uma heroína ou não. Numa das conversas com os locais, é dito que o local onde estão é o maior site arqueológico do continente, ou melhor, que podia ser o maior se não fosse constantemente pilhado por pessoas com menos escrúpulos, que deixam para trás apenas relíquias partidas. Uma das frases mais famosas de Indiana Jones é: “Isso pertence a um museu!” Mas a que museu? E porquê a um museu? Porque não deixar os objetos onde estão e simplesmente facilitar o acesso a eles?

Zahi Hawass, arqueólogo e ex-ministro egípcio, passou grande parte do seu mandato a tentar recuperar itens que foram “roubados” (na sua opinião) e “levados” do seu país e que estão espalhados por museus no mundo inteiro, inclusive no Louvre e no British Museum. Numa certa perspetiva, Shadow confronta-nos com esta situação várias vezes: é legítimo por parte de Lara retirar um objeto da sua casa? A destruição que algumas das suas ações causam têm várias consequências para terceiros, que ela não sofre a longo prazo e que, muitas vezes, nem sequer considera quando está cega pela sua obsessão de atingir um objetivo. Estará ela realmente a fazer o bem ou a corrigir os seus erros e de outros que vieram antes dela? O bem que ela está a fazer é para todos? Esta luz mais sombria e fria que incide na protagonista é uma lufada de ar fresco num universo habitualmente leve e sem profundidade. As nossas ações nos jogos têm sempre consequências direitas mas aqui, somos levados a pensar muitas vezes nas consequências que temos nos outros.

Shadow of the Tomb Raider é um ótimo jogo e uma excelente continuação da série e é discutível se não é o melhor da nova série. Apesar de termos a sensação de que os antecessores são repetidos, incluindo a falta de liberdade física que há em campo aberto, coloca-nos questões que raramente pensamos quando estamos num ambiente tão intenso como aquele que estes jogos apresentam.

Num todo não desilude, mas também não surpreende muito. No que respeita ao mythos de Lara Croft, é um culminar da criação da sua nova persona, em particular de todas as suas falhas que tornam a nossa relação com ela mais empática do que nunca, seja pela positiva ou negativa. Lara Croft, mesmo com estas alterações, continua a ser um exemplo virtual de muitas mulheres reais que marcam o seu lugar nos respetivos campos. E é um forte exemplo de heroísmo e humanidade para qualquer um, tanto para mulheres como para homens.

João Machado, Rubber Chicken