No fim, toda a moda desemboca em Paris. Nova Iorque abriu as hostilidades, no início de setembro, Londres foi a paragem que se seguiu. A comitiva de manequins, produtores, stylists, jornalistas, cabeleireiros e maquilhadores partiu para Milão e, no último dia 24 de setembro, aterrou na cidade luz. Durante nove dias, cerca de 90 marcas e criadores (só no calendário oficial) desfilaram, apresentando as coleções de pronto-a-vestir feminino para o próximo verão.

O mundo não tira os olhos de Paris. Se, por um lado, quer ver qual o próximo passo dos grandes pesos pesados do mundo da moda, como Christian Dior, Saint Laurent, Chanel, Balmain, Hermès, Givenchy, Balenciaga e Louis Vuitton, com fortes heranças mas também com a necessidade de acompanharem uma indústria em mudança, por outro, quer seguir de perto o crescimento de designers mais recentes e a consolidação dos seus nomes enquanto marcas. Ao rol juntam-se, estação após estação, marcas estrangeiras. Stella McCartney, Valentino, Miu Miu e Alexander McQueen, entre outros, há muito que trocaram a passerelle dos seus países de origem pela cidade onde tudo acontece.

Mas mesmo para aquela que é a semana da moda mais importante do mundo, a última edição foi especial. Nas salas de desfiles montaram-se cenários colossais, moldaram-se os preceitos de marcas cheias de história a ideais emergentes e despertaram-se polémicas. Em Paris, o capítulo do próximo verão começou a ser escrito na tarde do dia 24 de setembro, quando o desfile da Christian Dior abriu o calendário.

Desfile da Dior, na Semana da Moda de Paris © Pascal Le Segretain/Getty Images

Depois de, há um ano, a diretora criativa Maria Grazia Chiuri ter tirado da cartola a t-shirt com o slogan “We should all be feminists” e de ter diminuído a altura dos saltos, a designer voltou à carga num espetáculo com quê de interventivo. Antes de as manequins se deixarem ver, numa passerelle ampla, com fumo e iluminação própria de um bailado, foi precisamente uma trupe de bailarinos a fazer as honras da semana da moda. Os movimentos clássicos e os contemporâneos misturaram-se sob a direção da coreógrafa israelita Sharon Eyal. Num único desfile, Chiuri resgatou aquela que era uma arte bem próxima do próprio monsieur Dior, retirando-lhe a severidade que, durante séculos, pesou sobre o corpo feminino.

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“A tradição clássica do ballet não fala sobre corpos de mulheres reais. A história do ballet exige formas que não são naturais e movimentos que também não o são para os nossos corpos. Coreógrafas como Isadora Duncan e Pina Bausch quebraram essas regras”, afirmou a designer ao The Guardian, minutos antes do início do desfile. Chiuri transportou essa mesma organicidade para a roupa, não fosse a silhueta Dior, há décadas, aquela ampulheta subtil. Se as pontas e a barra têm feito as suas vítimas, com a moda a história não é diferente.

“[A moda] quis controlar as mulheres e comprimir os seus corpos. Estamos a viver um momento revolucionário. Esta é uma nova era, em que a moda deve apoiar as mulheres e não controlá-las. A dança pode mostrar como é que as coisas podem ser diferentes. Numa altura revolucionária, uma casa maravilhosa como a Dior tem de estar atenta às mudanças que estão a acontecer em todo o lado”, concluiu Maria Grazia Chiuri.

Desfile da Dior, na Semana da Moda de Paris © Pascal Le Segretain/Getty Images

Em nome dessa liberdade, logo representada no desfile através da dança, a visão empoderadora da diretora criativa da Christian Dior fez-se sentir também nas peças. Nenhuma delas continha as habituais estruturas de corseterie, utilizadas para apertar e definir a cintura e o busto femininos. Mas leves e fluidas do que nunca, as roupas carregaram inspirações no ballet clássico, mas também na dança das grandes coreógrafas do século XX. Para Maria Grazia Chiuri o desafio é redobrado. Em julho de 2016, tornou-se na primeira mulher a assumir a direção criativa da Christian Dior (à semelhança do que aconteceu a Clare Waight Keller, autora do vestido de noiva de Meghan Markle, quando chegou à Givenchy). Agora, a designer italiana propõe-se a deixar os velhos corpetes sem comprometer o ADN de uma casa histórica. O que, isoladamente, poderia ser uma opção difícil de explicar, é sustentado pelo desfile-espetáculo, o momento em que roupa, dança, luzes, cenografia e música consubstanciam uma única ideia.

Céline ou Celine? O acento foi só o começo

A mudança está aí, mas é preciso saber fazê-la e Hedi Slimane é o designer que gosta de garantir, lodo desde início, que deixa um rasto nas marcas por onde passa. Aconteceu com a linha masculina da Christian Dior, onde as silhuetas e fittings se foram estreitando à imagem e semelhança do seu criador, aconteceu quando, em 2012, assumiu a direção criativa da Yves Sanit Laurent, alterando o nome da marca fundada no início dos anos 60 para apenas Saint Laurent e redirecionando o foco da casa para as celebridades de Beverly Hills.

Desfile da Celine, na Semana da Moda de Paris © ANNE-CHRISTINE POUJOULAT/AFP/Getty Images

Em janeiro, Slimane tomou as rédeas da Céline, sucedendo à aclamada designer britânica Phoebe Philo, que ocupou o cargo durante praticamente dez anos. A primeira resolução foi retirar o acento do nome da marca, simplificando-o e recuperando a grafia adotada pela marca na década de 60. Alguns concordaram, mas não a maioria dos aficionados da marca francesa. Ainda assim, um desconto para o designer que gosta de mudar os nomes das marcas.

No passado dia 28 de setembro, foi revelada a primeira coleção desenhada por Slimane para a Céline (agora Celine), com uma linha masculina a seguir-se no rol de novidades. Curiosamente, na mesma cidade e horas antes do desfile, um grupo de aficionadas de Phoebe Philo reuniram-se para recordar e celebrar a passagem da designer pela casa Celine. O grupo de mulheres, obviamente desagradadas com a contratação de Hedi Slimane, vestiu criações de Philo da cabeça aos pés.

Desfile da Saint Laurent, na Semana da Moda de Paris © FRANCOIS GUILLOT/AFP/Getty Images

As críticas vieram em forma de avalanche. Num único desfile, o designer francês mudou (ou ignorou) radicalmente a estética da marca. Até conhecida por um pronto-a-vestir feminino minimal, sofisticado, confortável e bastante próximo do quotidiano da mulher real, a nova Celine surgiu com traços roqueiros e marcas irrefutáveis dos anos 80. O predomínio do preto, os vestidos e saias curtas e silhuetas justas ao corpo e os ombros dramaticamente largos despertaram um único pensamento: Slimane continua com a cabeça na Saint Laurent, ou melhor, no seu próprio estilo, descuidando a maioria dos códigos estéticos da marca que agora assumiu, sexualizando-a quando ela era precisamente um símbolo de uma alternativa dentro do guarda-roupa da mulher.

Chanel, o maior espetáculo do mundo

Há os maus e depois há os bons espetáculos. E nesta última matéria, Karl Lagerfeld, que completou recentemente 85 anos, é um mestre. A Chanel, casa francesa que dirige desde 1983, já é conhecida por mudar a aparência do Grand Palais, em Paris, estação após estação. Já construiu uma estação espacial, um supermercado gigantesco, uma selva tropical com quedas-d’água, um bosque outonal, um aeroporto e até um casino. Para apresentar as propostas para o verão de 2019, a Chanel criou uma praia dentro do palácio, com areal e ondas a rebentarem nos pés das manequins.

A Chanel foi a banhos… dentro do Grand Palais

No campeonato das passerelles fantásticas, é preciso mencionar o desfile que encerrou a Semana da Moda de Paris, na última terça-feira. A Louis Vuitton de Nicolas Ghesquière montou um complexo de túneis espaciais em pleno Louvre. A estrutura foi pensada para receber uma coleção futurista, que ao mesmo tempo se afasto do espectro do sportswear.

Desfile da Louis Vuitton, na Semana da Moda de Paris © BERTRAND GUAY/AFP/Getty Images)

Já a Saint Laurent voltou ao Trocadéro para um desfile com vista para a Torre Eiffel. Anthony Vaccarello parece ter mergulhado a fundo nos arquivos da marca e recuperado peças desenhadas pelo próprio Yves Saint Laurent. As plumas, as blusas de laçada, os casacos de safari, as estrelas e as capas — clássicos a que o designer italiano se manteve fiel.

Também no que toca à presença portuguesa, esta não foi uma semana da moda qualquer. Marques’Almeida, a dupla fixada em Londres, estreou-se no calendário de Paris. Maria Miguel, a menina prodígio que há um ano assinava um contrato de exclusividade com a Saint Laurent, desfilou para cinco grandes marcas — Christian Dior, Saint Laurent, Isabel Marant, Stella McCartney e Chanel –, enquanto Maria Clara pisou a passerelle da Céline. Perdão, Celine.