Chamava-se Robert mas será sempre Bob no mundo do futebol. Bob Paisley, histórico treinador do Liverpool no final da década de 70 e início da de 80, faria esta quarta-feira 100 anos. Em Anfield Road, estádio onde passou mais de 50 anos dos 77 que viveu, a homenagem foi feita no passado sábado, com um minuto ininterrupto de aplausos, um enorme mosaico formado pelos adeptos com a inscrição “Paisley 100” e memórias contadas pelas vozes de Kenny Dalglish e Graeme Souness durante o intervalo do jogo em que o Liverpool venceu o Crystal Palace. Paisley, que morreu em 1996, deixou um legado que ainda está à espera de ter par nos reds e na Europa e é normalmente encarado como o melhor treinador de sempre do futebol inglês. Ainda que, tal como disse Souness no passado sábado, nem sempre tenha tido o mérito devido.

A bandeira com o rosto de Bob Paisley é uma presença constante nas bancadas de Anfield Road

Mais de 50 anos no Liverpool, o clube pelo qual “varria as ruas se fosse preciso”

Nasceu em 1919, poucos meses depois do fim da Primeira Guerra Mundial, numa comunidade que o próprio descreveu como “um sítio onde o carvão era rei e o futebol era religião”. Chamou a atenção ainda na escola, onde se destacou como um dos melhores jogadores entre as restantes crianças, e acabou por integrar os quadros do Liverpool em 1939. Não voltaria a trabalhar para mais ninguém até se reformar, em 1983. Depois de um período inicial em que pouco jogou, devido às restrições impostas pela Segunda Guerra Mundial – os jogos só podiam realizar-se fora das zonas de evacuação –, Paisley ganhou regularidade enquanto lateral esquerdo e acabou por somar 253 partidas ao serviço do Liverpool ao longo de 15 anos. Quando se reformou, em 1954, integrou a equipa técnica enquanto fisioterapeuta e adquiriu uma forte influência no balneário e junto dos jogadores, principalmente pelo facto de contar com 35 anos e de ainda ter memória recente do que era estar do lado dos que lutam dentro das quatro linhas. A opção de continuar no clube com outra função não foi propriamente um desejo ou algo em que tivesse pensado muito – foi apenas aquilo que teve de fazer.

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“Ainda que espere ter mais umas temporadas enquanto jogador, estou a estudar para ser fisioterapeuta e massagista quando os meus dias dentro dos relvados acabarem. Nós, homens casados, temos de olhar para o futuro”, disse ainda antes de pendurar as botas, deixando claro que a decisão de integrar a equipa técnica depois de terminar a carreira nada mais foi do que uma maneira de continuar a pôr a comida na mesa. Em 1959, quando Bill Shankly chegou ao Liverpool, trocou as marquesas e as massagens pelo cargo de adjunto que viria a desempenhar durante mais de 15 anos. Ao lado de Shankly – uma figura em tudo diferente de si, desde a relação com a comunicação social à personalidade extrovertida que Paisley nunca teve – construiu o “império vermelho” que o clube inglês teve em Inglaterra e na Europa nas décadas de 60 e 70 e aplicou-se no estudo das táticas, dos métodos de treino e do adversário, deixando para o treinador principal apenas a escolha dos jogadores e a presença imponente junto do banco ou nas conferências de imprensa.

Quando Bill Shankly decidiu reformar-se, depois de conquistar três títulos da First Division, duas Taças de Inglaterra e uma Taça dos Campeões Europeus, a direção do Liverpool olhou para o adjunto Bob Paisley como a escolha óbvia para a sucessão no cargo de treinador principal. Depois de hesitar, convencido de que era melhor numa posição mais recatada e sem exposição pública, acabou por ser convencido a aceitar. Foi o treinador de uma geração do Liverpool que teve Dalglish, Souness e Rush, o líder de uma equipa que era, sem dúvida, o melhor conjunto de homens a jogar futebol na altura. Ficou até 1983 e depois da reforma ainda assumiu o cargo de diretor para o futebol que só deixaria em 1992, 53 anos depois de pisar Anfield Road pela primeira vez, condicionado pela doença de Alzheimer entretanto diagnosticada. “Este clube foi a minha vida. Ia varrer ruas pelo Liverpool e ter orgulho nisso se me pedissem”, disse Bob Paisley na altura em que deixou o cargo de treinador principal.

Em 1973, ao lado de Bill Shankly, ainda enquanto treinador adjunto do Liverpool

20 títulos em nove temporadas e um recorde que só caiu em 2014

Em 2014, quando venceu a Liga dos Campeões com o Real Madrid, Carlo Ancelotti igualou um recorde que durava desde 1981. Vencer a principal competição europeia de clubes três vezes, feito entretanto imitado por Zinedine Zidane em maio do ano passado, era algo que durante mais de 30 anos só Bob Paisley tinha conseguido. Em nove temporadas enquanto treinador principal do Liverpool, o inglês conquistou 20 títulos, atingindo uma média quase inacreditável de um troféu ganho a cada 26 jogos. Sob a orientação de Paisley, os reds foram campeões nacionais seis vezes e ficaram em segundo nas três épocas restantes: o que significa que, à exceção da primeira temporada do inglês como treinador principal, nos anos em que não ganhou a Division One, o Liverpool ganhou a Taça dos Campeões Europeus. Durante oito anos, os adeptos do clube de Merseyside celebraram todas as temporadas a conquista ou do Campeonato ou da principal prova europeia.

É verdade que o futebol está longe de ser previsível ou de corresponder às respostas da matemática. Mas num exercício fácil de “e se”, e tendo em conta o número de títulos que Bob Paisley deu ao museu do Liverpool, é curioso pensar no que teria acontecido se o treinador tivesse ficado em Anfield Road tanto tempo como Alex Ferguson esteve no Manchester United. Se mantivesse a média impressionante de conquistas daqueles nove anos durante os 27 anos que Sir Alex passou em Old Trafford, Paisley teria vencido 60 troféus (o escocês ganhou 38, um número, ainda assim, acima do normal).

Alex Ferguson, o único treinador que em Inglaterra se aproximou dos feitos de Bob Paisley, é normalmente visto enquanto exemplo de um técnico que criou uma espécie de dinastia. Um homem que, durante um longo período de tempo, transformou um clube – tantas vezes considerado o maior clube do mundo – uma e outra vez. Tal como Ferguson, Paisley sempre soube quando era a altura certa para deixar sair um jogador. Em 1977, Kevin Keegan, um dos melhores avançados de sempre do Liverpool, decidiu que queria sair e assinou pelos alemães do Hamburgo por cerca de 500 mil libras. Para o substituir, o treinador escolheu um escocês que nunca tinha jogado noutro sítio que não o Celtic: Paisley recebeu, formou e moldou Kenny Dalglish, tornando-o naquele que foi provavelmente um dos melhores jogadores de sempre a ter jogado pelos reds. Paisley pegou numa situação complicada, analisou-a e transformou-a numa das melhores coisas que aconteceram ao Liverpool no final da década de 70.

Com todos os troféus que conquistou na temporada 1980/81

As contas são fáceis de fazer: entre 1974 e 1983, Bob Paisley ganhou seis campeonatos nacionais, três Taças dos Campeões Europeus, três Taças da Liga, seis Supertaças de Inglaterra, uma Taça das Taças e uma Supertaça Europeia. De todas as competições em que participou, o treinador só não conquistou a Taça de Inglaterra – perdeu a única final em que marcou presença para o Manchester United de Tommy Docherty, em 1976/77. O homem que não queria ser treinador principal porque preferia trabalhar na sombra tornou-se o dono da Europa e fez do Liverpool um dos clubes mais poderosos do século XX.

O herói silencioso entre os grandes egos

Bob Paisley sucedeu a Bill Shankly, um extrovertido por natureza, foi contemporâneo de Brian Clough, que adorava protagonismo e não tinha quaisquer filtros, e foi o nome maior antes de Alex Ferguson, carismático e dono de uma relação privilegiada e mútuo entendimento com a comunicação social. Entre estes três nomes, a timidez e a personalidade mais introvertida do rapaz nascido nos subúrbios de Sunderland diferencia-se.

Em 1977, dias depois do Liverpool vencer o Borussia no Olímpico de Roma e conquistar a primeira Taça dos Campeões Europeus sob a orientação de Paisley, o plantel e a respetiva equipa técnica apresentaram o troféu no histórico St. George’s Hall, no centro da cidade. Nesta altura – e durante grande parte dos anos em que Bob Paisley foi o treinador dos reds –, Bill Shankly continuou a aparecer junto da equipa de forma frequente, sempre de fato e gravata vermelha, e a comemoração do título europeu não foi exceção. Naquele dia de maio, de forma instintiva, Shankly avançou para o microfone e preparou-se para responder de forma natural aos milhares de adeptos que chamavam por ele. Numa história só há poucos anos revelada ao Independent, Roy Evans, jovem treinador que fazia parte da equipa técnica de Paisley, foi o único que teve coragem para parar o antigo técnico e recordá-lo de que já não era o treinador principal.

Boss“, terá dito Evans, “primeiro tem de ser o Bob”. A melhor parte da história é o fim: Paisley aceitou aquilo que era evidente, recusou falar e entregou ele próprio o microfone ao antecessor. Esta relutância em assumir uma figura proeminente, patente desde o momento em que hesitou quando foi convidado para suceder a Shankly, acompanhou-o durante os nove anos em Anfield Road. A maneira como olhava para o futebol, com respeito mas nunca com deslumbramento, tornava-o único entre aqueles que fizeram nascer o culto do treinador: afinal, Paisley tinha passado por coisas mais sérias, mais duras e que o impressionaram bem mais do que qualquer golo de fora de área.

Em 1978, com a segunda Taça dos Campeões Europeus conquistada e ao lado de Graeme Souness

“Esta é a segunda vez que venço alemães aqui… A primeira foi em 1944. Entrei em Roma num tanque quando a cidade foi libertada. Se alguém me tivesse dito que 33 anos depois estava aqui outra vez para nos ver ganhar a Taça dos Campeões Europeus dizia-lhe que estava maluco! Quero saborear cada minuto… E é por isso que não estou a beber hoje!”, explicou depois da final europeia de 1977. Anos mais tarde, numa afirmação em tudo concordante com aquilo que sempre mostrou ser, foi questionado sobre o momento mais entusiasmante da carreira: “Acreditem ou não, a experiência mais incrível da minha vida não tem nada a ver com futebol. Foi a inesquecível visão do Vesúvio em erupção quando estava em Nápoles durante a Guerra”. Paisley foi o Mr. Liverpool. Mas também sempre foi muito mais do que isso.

A humildade de quem nunca quis ser figura de proa

Há alguns dias, Graeme Souness disse ao Daily Mail que Bob Paisley “levou o Liverpool para outro nível” mas recordou que nem todos gostavam dele em Merseyside. O treinador criou e destruiu equipas, fez o que teve de fazer para ser bem sucedido na posição mais importante do clube que adorava e o facto de ser um homem de poucas palavras tornou-o um alvo fácil para piadas de menos gosto. O inglês era ligeiramente coxo, devido a uma lesão antiga no tornozelo esquerdo, e esse pormenor físico era o escape mais utilizado pelos jogadores que não eram escolhidos para o onze inicial. Escolha essa que, tantas vezes, Paisley fez com base no julgamento de outros por achar que a sua opinião não era a única que merecia ser ouvida.

Roy Evans, o mesmo Roy Evans que tinha tirado o microfone a Bill Shankly em 1977, contou ao Independent que o treinador que perguntava constantemente que jogadores da equipa B mereciam uma oportunidade no plantel principal. “Eu sou um tipo de 25 anos e ele está a pedir-me opiniões. Dizia: ‘Podes não acertar mas podes ver qualquer coisa que eu não vi’. Ele dava-te a tua voz, a tua confiança, e essa é a única forma de aprender, na verdade. Ele mostrava que queria que as pessoas abaixo dele tivessem voz e falassem”, revelou o antigo elemento da equipa técnica dos reds.

Os Paisley Gates, em Anfield Road, que têm representadas as três Taças dos Campeões Europeus conquistadas pelo treinador

Consciente da própria fraqueza no campo da comunicação, delegava a função de dizer os jogadores se estavam ou não no onze inicial ou no lote de convocados e, talvez por isso, nunca desenvolveu relações muito próximas com aqueles que treinou. Era técnico de gabinete, de estudar táticas e movimentações, de ver uma e outra vez os vídeos dos lances dos jogos e perceber o que está mal, detetá-lo, melhorá-lo e ser bem sucedido. Bob Paisley, homenageado em Anfield Road com os Paisley Gates, foi o melhor de sempre do Liverpool, o melhor de sempre de Inglaterra e um dos melhores de sempre na Europa. Tímido, de poucas palavras, sem qualquer relação com a comunicação social, não sobreviveria a um século XXI de palavras, perguntas e respostas e protagonismo constante. Foi, ao contrário de tantos outros, um homem que nasceu e viveu no tempo certo. Mas deixou a sua marca para as gerações futuras que não o compreendem mas aprenderam a celebrá-lo.