Unanimidade. A palavra é raramente usada quando se fala das maratonas de debate na Câmara dos Comuns face ao Brexit — e, no entanto, foi isso que aconteceu na tarde desta quarta-feira, quando os deputados aprovaram todos a moção proposta por Theresa May no dia anterior. Claro que tal não seria possível se não tivesse havido cedências tremendas por parte da primeira-ministra que passou de dizer “este acordo ou no-deal” para “este acordo, no-deal ou adiamento do Brexit”.

A exatamente 30 dias da data prevista para o Brexit  — 29 de março —, o Parlamento britânico apoiou um plano que pode redundar numa extensão do Artigo 50 (artigo que determina a saída da União Europeia). Senão, vejamos: May irá ao Parlamento apresentar o seu novo acordo conseguido com Bruxelas até 12 de março; em caso de chumbo, regressa no dia seguinte para ter “consentimento explícito” da Câmara sobre se deseja sair sem acordo; e, se não o tiver, regressa a 14 de março com uma moção para votar uma extensão do prazo de negociação.

Tendo em conta que a maioria dos deputados continua a não estar convencida do acordo de May e que a maioria do Parlamento já deixou claro que quer evitar uma saída sem acordo, o cenário de empurrar o Brexit com a barriga parece cada vez mais provável. A não ser que alguém tire um coelho da cartola, como May conseguir um acordo com novidades no backstop que agradem ao seu partido ou Jeremy Corbyn convencer tories suficientes para aprovar um segundo referendo, o adiamento pode bem tornar-se uma realidade. Por quanto tempo? Os deputados dirão de sua justiça, em caso de votação, já que podem apresentar emendas à moção do Governo. O confronto final deverá assim ficar adiado para daqui a duas semanas — uma data perigosamente próxima de 29 de março.

As vitórias: o “roubo” das ideias de Cooper e a benevolência dos europeus ao adiamento

A unanimidade em torno da moção do Governo só foi conseguida porque Theresa May concordou em admitir a votação um adiamento, como tinha sido já sugerido por Yvette Cooper, a deputada trabalhista que decidiu apresentar uma emenda com essa ideia ao Parlamento — emenda essa em que o Governo inicialmente decidiu abster-se, tendo depois decidido apoiá-la. May antecipou-se, apropriou-se da ideia do adiamento e Cooper limitou-se a tornar a sua emenda num pedido de reforço do compromisso político do Governo.

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Apesar disso, o Parlamento não hesitou e apoiou de forma esmagadora a emenda de Cooper, apesar da redundância, com 502 votos a favor e 20 contra. Foi uma mensagem clara para o Governo de um Parlamento que diz querer ter voto na matéria. E, para May, esta vitória deve ter tido um gosto ligeiramente amargo, já que a primeira-ministra e Cooper são rivais de longa data, como relata o jornal Guardian, que define as carreiras das duas políticas como “interligadas” — até no Brexit.

A tentativa de parar o relógio começa assim a ganhar forma, mas pode esbarrar num último muro: a aprovação dos Estados-membros da UE, que têm de autorizar qualquer extensão do Artigo 50. Mas, apesar das reservas levantadas esta quarta-feira pelo Presidente francês Emmanuel Macron — que afirmou que qualquer adiamento só pode ser aceitado se for “justificado” —, outros líderes europeus deram sinais contrários, entre eles a própria chanceler alemã, Angela Merkel. “Se o Reino Unido precisa de mais tempo, não nos oporemos, é claro que desejamos uma saída ordenada”, declarou.

Também George Ciamba, ministro dos Negócios Estrangeiros da Roménia — país que ocupa atualmente a presidência rotativa da UE —, declarou que Bruxelas está preparada para responder a um pedido de extensão e sublinhou que quaisquer problemas criados, como por exemplo o da inclusão ou não do Reino Unido nas eleições para o Parlamento Europeu, podem ser ultrapassados se houver “vontade política”. Os ventos que sopram de Bruxelas quanto à possibilidade de um adiamento parecem ser brandos. E, ao contrário do que tem sido habitual, Theresa May pode mesmo respirar de alívio esta noite.

As derrotas: a demissão “ridícula” do Governo e a falta de apoio ao Labour

Mas nem tudo foram rosas esta quarta-feira para Theresa May e o seu Governo. Alberto Costa, membro júnior do Governo para o gabinete da Escócia, demitiu-se por ter apresentado uma proposta de emenda que o Governo rejeitava inicialmente e que acabou por apoiar — tendo sido a única emenda aprovada por unanimidade na Câmara. Pelo meio, os direitos dos cidadãos europeus (como os portugueses) saíram reforçados, mas a reputação do Executivo saiu chamuscada.

Em causa estava a proposta de Costa para que, em caso de saída sem acordo, o Governo britânico se comprometa em tentar alcançar um compromisso com os líderes europeus para que os direitos dos europeus no Reino Unido e vice-versa sejam protegidos nos termos previstos no acordo (mesmo que chumbado). Costa avançou com a proposta de emenda, foi forçado a demitir-se e, horas depois, um secretário de Estado anunciava no Parlamento que o Governo tem “os mesmos objetivos políticos” que estão explícitos na emenda, razão pela qual decidia apoiá-la.

Downing Street decidiu sublinhar aos jornalistas que foi o próprio Costa a demitir-se, mas várias fontes próximas do ex-membro do Executivo negam por completo essa teoria, dizendo que foi forçado a fazê-lo. “O Alberto foi despedido, os whips disseram-lhe que tinha de se demitir antes do debate. Estavam sempre a perguntar-lhe ‘já podemos aceitar a tua demissão?’”, revelou uma fonte ao Telegraph.

“É ridículo. É óbvio que têm um padrão duplo”, disse outra fonte ao mesmo jornal, apontando para os constantes desafios a que May é sujeita por outros ministros, em público, que não redundam em demissão.

O epíteto de “ridículo”, esse, foi adotado por muitos: “De facto parece estranho”, escreveu a correspondente política da Sky News Kate McCann. “Ele passou muito tempo da semana a tentar arranjar uma forma de avançar com isto sem prejudicar a primeira-ministra e mesmo assim foi obrigado a sair.” Mas há uma outra vitória a registar, para os cidadãos europeus que vivem no país, como os portugueses, que podem assim ter os seus direitos mais protegidos.

Outra derrota coube não a Theresa May, mas ao seu adversário político do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn. A emenda proposta pelo Labour foi derrotada com 323 votos contra e apenas 240 a favor, menos ainda do que reuniu na última votação no Parlamento sobre este tema, quando o partido propôs exatamente a mesma coisa. Em causa está a estratégia dos trabalhistas para o Brexit: saída sim, mas com manutenção numa união aduaneira com os europeus e alinhamento ao máximo com as regras do mercado único.

Chumbada a emenda, Corbyn assumiu aquilo que já tinha anunciado no início da semana: o Labour, abalado pelas demissões de alguns dos seus deputados que fugiram para o Grupo Independente, irá agora prosseguir uma estratégia em defesa de um segundo referendo, permitindo aos britânicos deixar claro se preferem o acordo proposto por May ou se preferem ficar dentro da UE.

“Vamos apoiar uma votação pública para impedir um Brexit Tory danoso ou um cenário desastroso de saída sem acordo”, afirmou Corbyn, dando a entender que irá propor a emenda logo no dia 12, dia em que deverá ser votado o acordo de May.

Resta saber se, até lá, é capaz de tornar as fraquezas em forças e convencer não só todos os membros do seu partido como até gente da oposição a apoiar um novo referendo. Por agora, a maioria parece estar mais confortável com a estratégia de deixar o problema para depois do dia 29 de março, que está aí ao virar da esquina.