Gilead está em todo o lado. É um território na Jordânia referido por duas vezes na Bíblia. Há quem acredite que Gilead significa “região rochosa”.

É o neto de Manasseh, filho de Machir, possivelmente fundador do grupo tribal Israelita de Gilead mencionado em passagem bíblicas. Mas é também descendente de Michael e pai de Jorah, de acordo com as genealogias Gaditas. Ou progenitor de Jephthah, se acreditarmos nos Juízos 11:1: “Agora Jephthah o Gileadita, filho de uma prostituta, era um temível guerreiro. Gilead era o pai de Jephthah”.

Em hebraico, é um nome masculino derivado da conjugação entre “Gil” – que significa “alegria” e “felicidade” e “Ad” – que se traduz em “eternidade” e “para sempre”.

Gilead é eterna felicidade.

E é também a Gilead Sciences, uma empresa bio-farmacêutica Americana. No mesmo dia em que me convidaram para escrever este texto, o podcast “The Daily”, do New York Times, fez uma matéria intitulada “This Drug Could End H.I.V. Why Hasn’t it?” A resposta simplificada a essa questão complexa? A Gilead Sciences, eterna felicidade e dona da patente de uma droga que pode impedir a transmissão do vírus, colocou o medicamento (que serve como prevenção e deve ser tomado diariamente) no mercado Americano a 20 mil dólares por ano quando o seu preço de custo é apenas de 60 dólares por ano. Os principais grupos de riscos – afro-americanos/latinos pobres e homossexuais – não têm assim qualquer possibilidade de acesso à salvação. Robert Grant, o responsável maior pela descoberta de que o medicamento Truvada funciona também como prevenção para o contágio, relembra uma conversa com um colega que entretanto morreu de complicações relacionadas com o vírus HIV: “Se descobríssemos a cura para a Sida, será que a usávamos?”

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Eterna felicidade. Certo.

[o trailer da terceira temporada de “The Handmaid’s Tale”:]

Gilead é a capital do Barony de New Cannan no The Dark Tower, o épico de Stephen King. Gilead é mencionado no verso 15 do “O Corvo”, o poema clássico de Edgar Allan Poe, publicado em 1845. Fernando Pessoa fez uma tradução do texto mas evitou a referência e “is there balm in Gilead?” passou para “há um bálsamo longínquo”. Mas antes desse verso, o 15, há este, o 9:

“Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, “Amigos, sonhos – mortais
Todos – todos já se foram. Amanhã também te vais”.

Gilead está em todo o lado.

Gilead é a nação teocrática que nasce das cinzas dos Estados Unidos da América no romance distópico de Margaret Atwood: The Handmaid’s Tale. É aqui que queria chegar. O caminho não foi assim tão longo. A opressão conhece todos os atalhos.

Em Português, é A História de Uma Serva, que Bruce Miller entretanto transformou em série para o serviço de streaming Hulu. Foi um fenómeno popular imediato.

Na América, alguns Estados desafiam a lei Federal que garante às mulheres o direito de abortar. Trump, numa entrevista, admitiu que as mulheres deveriam ser castigadas no caso de interromperem uma gravidez. Quando o jornalista lhe perguntou se os homens não teriam também que partilhar dessa responsabilidade, o homem laranja abanou a cabeça e disse que não. No Alabama e na Geórgia e em todas as outras regiões Americanas onde homens brancos já a cair para o lado geriátrico insistem em legislar os órgãos reprodutivos das mulheres, protestantes vestiram as vestes vermelhas das Servas — adoptando o visual da série que agora regressa para a 3ª temporada.

No final da 2ª, June – depois de ser sistematicamente torturada e violada — tem uma hipótese de fuga. Há uma carrinha que a poderá levar para o Canadá onde ela e a sua criança estarão, por fim, em segurança. June hesita. Mas apenas por uns momentos. Ficará em Gilead onde se juntará à resistência. Alguma da crítica Americana não ficou convencida com esta decisão, considerando-a inverossímil, transformando June numa guerrilheira com características mitológicas e, logo, sobre-humanas, capaz de sacrificar o seu bem estar por uma causa maior – afastando-a das acções das pessoas comuns. Mas a única pergunta que interessa é esta: teria essa solução narrativa sido a mesma se os Estados Unidos não fossem agora liderados por um incapaz que apoia uma extrema-direita evangélica que luta pela regressão dos direitos individuais? Como é que June pode fugir de Gilead se tantas mulheres estão a lutar – agora mesmo e no mundo real – pela sua liberdade de escolha nos Estados Unidos?

A vida que imita a ficção que se inspira na vida.

“The Handmaid’s Tale” é um espelho de uma América – de um mundo — possível, o que transporta a série para o género do terror, transformando-a em objeto de visualização obrigatória. Daqui a 200 anos, quando os historiadores que tiverem sobrevivido às alterações climáticas quiserem estudar o que foram os Estados Unidos durante a época Trump, existirão três fontes de informação fundamentais: tweets, e episódios do “Last Week Tonight With John Oliver”, “Veep” e “The Handmaid’s Tale” – um conjunto que faz o retrato perfeito da estupidez e violência de egos inflamados e absurdos.

A distopia de “Handmaid’s Tale” está mesmo aqui ao lado, está na legislatura do Alabama e nas palavras de Damares Alves, a ministra Brasileira da Mulher, Família e Direitos Humanos, está na “pistolinha” ridícula que Bolsonaro faz com os dedos como se fosse uma criança e nos acórdãos misóginos e medievais de Neto de Moura.

“The Handmaid’s Tale” não é a melhor série de sempre — nem de longe – e é bem possível que nem sequer seja a melhor série da atualidade (não é fácil competir com “Better Call Saul” ou “The Deuce”) mas esta infeliz colagem à realidade oferece-lhe uma rara urgência. Talvez seja demasiado estilizada mas são essas vestes de vermelho forte que se tornaram icónicas e deslizaram para a realidade onde são agora símbolos de uma opressão ignóbil. Nem sequer é a única ficção que utilizou a infertilidade como gatilho para a revolução social e política: “Filhos do Homem”, o extraordinário filme de Alfonso Cuarón, também sabia como o equilíbrio da nossa sociedade é frágil e que basta retirar aos Homens algo que eles dão como garantido para os mecanismos de opressão aquecerem os seus motores. Nestas ficções, é a capacidade de se reproduzirem; na vida real pode ser qualquer coisa: para quem sempre existiu numa situação superior, a igualdade equivale a perder estatuto e privilégios.

Agora sim, os versos de “O Corvo”, ainda pela tradução de Fernando Pessoa:

“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demónio ou ave preta”
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luta e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, “Nunca Mais”

Gilead está em todo o lado. O mínimo que podemos fazer é estar atentos. “The Handmaid’s Tale” relembra-nos isso a cada episódio.

A terceira temporada de “The Handmaid’s Tale” estreia-se esta quinta feira, dia 6, no serviço on demand NOS Play com um episódio triplo. A partir da próxima semana, o mesmo serviço apresenta um episódio novo todas as quintas feiras.