São nove pessoas – três músicos, seis performers, que às vezes se confundem nessas funções – à procura de qualquer coisa nos corpos uns dos outros. Tocam-se, abraçam-se, empurram-se, conhecem-se. Num espaço que tanto podia ser uma discoteca como uma arena de boxe sem cordas, espaço livre de convenções sociais, de politicamente correto, fazem-se construções geométricas, corpos a monte, pirâmides mal formadas, tudo ao som de um trio de jazz pouco ordeiro, música-barafunda. “Until Our Hearts Stop” é um dos mais recentes espectáculo da referência da dança mundial – e das artes performativas e cénicas no geral – Meg Stuart, e pode ser visto na Culturgest nos próximos dias 27 e 28 de Junho.

Nascida em Nova Orleães, Meg Stuart é filha de dois encenadores, ou seja, começou por participar nas produções dos seus pais ainda muito nova, na altura na Califórnia. Nos anos 80 mudou-se para Nova Iorque, fez a sua formação em dança e aprofundou a pesquisa em torno do movimento. No início dos anos 90 foi convidada para se apresentar na Europa, algo que desaguou na criação da sua atual companhia: Damaged Goods, em 1994, em Bruxelas. É aliás uma das suas cidades, onde vive e trabalha, a meias com Berlim.

Embora coloquemos a norte-americana no separador da dança – o mundo assim o parece exigir – diga-se que é muito mais uma combinação entre dança e teatro, corpo e texto, arte, se a liberdade assim o permitir. E é curiosamente um profundo espaço de liberdade que encontramos neste “Until Our Hearts Stop” (que se estreou em 2015, em Berlim), uma liberdade curiosa, quase violenta.

Antes de aqui chegar, Meg Stuart tinha acabado de fazer um solo “e então estava com vontade de fazer uma coreografia de grupo, com contacto, conexão física, acho que à procura de intimidade numa escala maior, num espaço maior”, explica antes de prosseguir:

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“Acho que veio daí, das estruturas de apoio pessoais, como é que nos apoiamos uns aos outros, uma curiosidade em torno disso. Depois comecei a olhar para a magia, a ilusão, tentei combinar, acho eu, a forma como os humanos se relacionam corporalmente, como se tocam, com uma ideia ilusória e etérea, pensei que estas duas qualidades em conjunto podiam ser uma estranha e interessante matéria para uma performance”.

Conversar com Meg Stuart, mesmo que ao telefone, é já por si uma experiência a reter. É uma daqueles pessoas que não tem a certeza, que repete muitas vezes as expressões “acho eu” ou “não sei”. E gente assim é gente que devemos ter sempre por perto, em quem devemos confiar. Mesmo quando fala do que é que pode ser o espaço cenográfico, a casa do espectáculo, Meg não fecha completamente as hipóteses: “O sítio é uma espécie de clube noturno, ou um espaço interior, um cubículo. Não sei, um sítio onde as pessoas se podem explorar sem protocolos sociais, e a meio da coisa eles vão expandido essa realidade, eles reparam que estão a ser observados, ou seja, a audiência não está apenas no lugar de voyeur, ela está implicada. Esse espaço torna-se mais coletivo, torna-se mais um espaço de imaginação”.

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A imaginação pode ser tramada. Só que aqui a imaginação está a uns meros metros e é potenciada por um trompete constipado, uma bateria moribunda, por tanta coisa. É uma intimidade nova, que não pode ser coisa fácil de atingir sem muito trabalho, sem conhecimento profundo:

“Alguns já se conheciam, e todos conheciam os trabalhos uns dos outros, mas nós trabalhámos de forma muito intensa, fomos construindo muito devagar. Fomos vendo coisas, conversando muito, foi todo um processo para todos nós. Isto de fevereiro a junho”, admite Meg Stuart.

E nessa busca no corpo alheio vai existindo de tudo. Procuram-se mamilos, nudez, o cheiro, o toque, o emaranhamento de pernas e braços, há uma obsessão em saber todos os cantos do outro. Dos outros. E isto traz curiosidade, brincadeira, generosidade: “Acho que os performers estão nestes tópicos, portanto, nas suas próprias palavras, eles estão a explorar a criança não contaminada, a pele alheia, a nudez. Sim, acho que é físico e obsessivo, o que é possível para outro corpo, noutro corpo, nesse sentido também há muita brincadeira… Não sei, esta coisa da carne humana e dos corpos, não sei, depois também me parece que se explorar o que é OK e o que não é OK, o fantasma do conservadorismo, não sei, é escorregadio, é contra o medo, mas isto tudo sem ser demasiado agressivo ou desrespeitoso. Acho até que há uma generosidade, um empoderamento para cada um”, explica a coreógrafa.

Como é habitual no trabalho de Meg Stuart, isto não é só dança nem é só teatro. Nem é só as duas ao mesmo tempo. Os cruzamentos artísticos com outras áreas são uma constante na sua obra, da pintura ao vídeo. Aqui volta a ser a música. Samuel Halscheidt, Marc Lohr e Stefan Rusconi, os músicos de serviço, são, para Meg, parte essencial do espectáculo. E não falamos só da música que criam, é que todos têm momentos na performance, um deles chega mesmo a jogar às chapadas com dois performers e quando dizemos às chapadas não é na cara, é nas costas, no peito, no rabo: “Diria que está a meio caminho entre uma banda incómoda e irritante e um trio de jazz. E eles dançam e participam e às vezes não sabemos quem são os performers e a banda. Eles estiveram inteiramente no processo e isso torna a coisa muito única. É a primeira vez que tenho três músicos e uma performance live, é um elemento com bastante peso, conduz o espectáculo e também há espaço para improvisações ao vivo, é livre. Cria espaço, paisagem sonora e possibilidades”.

E as possibilidades, em “Until Our Hearts Stop” – já agora um elogio ao nome, a coisa parece mesmo que às tantas pode provocar enfarte – são infinitas. Por exemplo, um performer que se coloca junto ao piano, meio que a falar com o pianista, a perguntar se consegue ver a sua mãe na plateia, que preferia que ela não estivesse lá, e depois desata a tomar considerações sobre uma ideia de aborrecimento; ou seja, não há música, é só um performer a sussurrar e como isso deve estar a entediar profundamente o público. A expectativa, o isto-agora-vai-virar-este-tipo-de-espectáculo, está lá muito. Mas, mais do que esse jogo todo, mais do que essas camadas, este pode ser um espectáculo sobre como o mundo não é, sobre como as pessoas não se relacionam, infelizmente:

“Sim, talvez possa ser um exemplo de como o mundo não é, talvez, existem demasiadas barreiras e medo, há demasiado stress, parece-me que se está a pedir se podemos voltar um bocado atrás, a outro sítio, onde isto não era tudo assim. Mas, no limite, é uma investigação coreográfica com palavras e movimentos e corpos e espaço e é um híbrido estranho entre dança e teatro. É construído na surpresa, ou seja, durante o espectáculo vais pensando ‘ó não, agora vai ser este tipo de espectáculo’, mas nunca vai por aí, não chega a ir, é bastante sem regras nesse sentido, achas que vai por ali, dá a ideia que vai, mas depois não vai”.

Nem ele, nem nós, nem o mundo. Ninguém vai.