Como é que se apreende um livro que não está à venda? A polémica à volta do pedido de censura à venda de livros infantojuvenis com cariz sexual numa feira no Brasil continua. No requerimento enviado ao Superior Tribunal Federal (STF) brasileiro, onde pedia ao tribunal para rever a decisão de suspender a censura na Bienal do Livro, a prefeitura do Rio de Janeiro enviou uma imagem fora de contexto: um dos livros em causa não é para o público infantojuvenil nem estava à venda na feira, que acabou no último domingo (8), avança o jornal Folha de S. Paulo.

No pedido para o presidente do STF, Dias Toffoli, que já tinha recusado à prefeitura o direito de lacrar e apreender livros que supostamente possuem cariz sexual e são voltados para o público infantojuvenil, o procurador-geral e o subprocurador-geral do Rio de Janeiro, Marcelo Silva Pereira Marques e Paulo Maurício Fernandes Rocha, respetivamente, apontam um título e utilizam imagens de um livro não comercializado na feira literária.

“As Gémeas Marotas” é um livro voltado para o público adulto que satiriza a personagem coelho Miffy do holandês Dick Bruna, com ilustrações de personagens de traços semelhantes a praticarem atos sexuais, e é assinado com o nome Brick Duna. A imagem, que retrata o livro traduzido por Maria Barbosa publicado em Portugal em 2012, mostra livro escrito em português europeu ao lado de um cartão postal com o preço em euros.

Imagem presente no pedido da autarquia do Rio de Janeiro

Diário do caso

Na última quinta-feira (5), o prefeito da cidade — cargo equivalente ao de presidente da câmara — do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, publicou nas redes sociais uma declaração em que determinava a apreensão do livro em banda desenhada “Vingadores — A Cruzada das Crianças”, da Marvel, da Bienal do Livro, uma das maiores feiras literárias do Brasil, por conter “conteúdo sexual para menores”, defendendo o uso de plástico preto para lacrar os exemplares e adiantar o tipo de conteúdo. Em causa estava um desenho em que dois protagonistas homens se beijam nos lábios.

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Na sexta-feira (6), um grupo de fiscais da prefeitura foi encaminhada para a Bienal, onde fez buscas a livros que pudessem ter conteúdo sexual para crianças, mas nenhum exemplar da banda desenhada em questão foi encontrado, já que havia esgotado devido à procura, e não foram feitas apreensões. Naquela manhã, Crivella publicara um vídeo no Twitter a dizer que a decisão tinha como objetivo “proteger as nossas crianças”.

Mais tarde, a Justiça do Rio de Janeiro publicou uma ordem que impedia a apreensão do livro pelo cariz homossexual e a cassação da licença do evento. “Desta forma, concede-se a medida provisória para compelir as autoridades a absterem-se de procurar e apreender obras em função do seu conteúdo, notadamente aquelas que tratam conteúdo homossexual e transexual. Concede-se a ordem judicial, igualmente, para compelir as autoridades a absterem-se de cassar a licença para a bienal”, dizia comunicado da Justiça.

O ilustrador da banda-desenhada, Jim Cheung, criticou no Instagram as declarações de Crivella, dizendo que o autarca está “desconectado com os tempos atuais”, e frisando que o livro tem já “uma década”.

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No sábado (7), conforme o volume de críticas sobre a decisão do autarca e a acusação de censura crescia, o jornal brasileiro Folha de S. Paulo publicou na primeira página da versão impressa a cena alvo das medidas, com o título para o artigo “Crivella tenta censurar HQ [história em quadrinhos, nome em português do Brasil para banda-desenhada] com beijo gay, mas é barrado”, que noticiava decisão da Justiça para impedir o procedimento de recolha de livros.

O youtuber brasileiro Felipe Neto, que tem mais de 34 milhões de subscrições no seu canal, anunciou a compra de 14 mil livros com temática LGBTQ+ para distribuição gratuita no evento.

https://twitter.com/felipeneto/status/1170112258560671745?ref_src=twsrc%5Egoogle%7Ctwcamp%5Enews%7Ctwgr%5Etweet

Mais tarde naquele dia, o presidente do Tribunal de Justiça, Claudio de Mello Tavares, suspendeu a decisão e afirmou que conteúdos homossexuais atentavam contra o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e portanto, deveriam ser comercializados em embalagens lacradas.

No domingo (8), a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, assinou um pedido direto ao presidente do STF, Dias Toffoli, em que pedia a suspensão e intervenção na decisão do Tribunal de Justiça carioca, justificando que medida “discrimina frontalmente pessoas por sua orientação sexual e identidade de género, ao determinar o uso de embalagem lacrada somente para ‘obras que tratem do tema do homotransexualismo’”.

PGR do Brasil pede ao Supremo Tribunal que revogue apreensão de livros no Rio de Janeiro

Toffoli acatou o pedido de Dodge e derrubou a decisão, dizendo que o “regime democrático pressupõe um ambiente de livre trânsito de ideias”. Gilmar Mendes, outro ministro do Supremo Tribunal Federal classificou a medida como um “verdadeiro ato de censura prévia, com o nítido objetivo de promover a patrulha do conteúdo de publicação artística”.

“Findou por assimilar as relações homoafetivas a conteúdo impróprio ou inadequado à infância e juventude, ferindo, a um só tempo, a estrita legalidade e o princípio da igualdade”, concluiu Toffoli.