Tem de existir sempre um ponto de viragem. Um acontecimento que marca um antes e um depois. Que altera as perspetivas, obriga a mudanças, torna preponderante uma reviravolta no que tinha existido até aí. Para Teresa Enke, é por isso que o marido é um mártir. Para Teresa Enke, a utilização da palavra forte e dura é correta porque tudo mudou desde que o marido morreu. Pode não ter mudado de repente, pode não ter mudado de um dia para o outro e pode ainda estar a mudar, uma década depois: mas tudo mudou. Há 10 anos, Robert Enke perdeu a defesa da própria vida e suicidou-se numa estação de comboios na Alemanha. E Teresa Enke carrega esse dia todos os dias para “dar significado à tragédia”.

O guardião que tinha medo de falhar e “se culpava muito”

A 10 de novembro de 2009, o mundo parou em choque para ouvir a notícia da morte de Robert Enke. O mundo do futebol, o mundo do desporto e o mundo no geral ficaram incrédulos a olhar para televisões, a ler jornais e a ouvir rádios quando souberam pela primeira vez que Robert Enke tinha morrido. Não só porque tinha 32 anos, não só porque era o guarda-redes titular do Hannover, não só porque era o principal candidato à baliza da seleção alemã no Mundial da África do Sul: mas porque o que tinha acabado de acontecer era diferente de tudo aquilo que conhecíamos até então. Enke, com uma carreira que tinha passagens pelo Benfica e pelo Barcelona e que parecia estar finalmente a ter reflexo na seleção, tinha colocado termo à própria vida. A crueldade da situação, a frieza com que tudo aconteceu — sem aviso, sem preparação –, deixou-nos em pânico. Como é que Enke, que parecia ser mais um ao lado de todos os outros jogadores de futebol, tinha feito aquilo?

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Os dias que se seguiram trouxeram respostas. Todas dadas, sem pruridos, sem receios, por Teresa. “É uma loucura porque agora tudo se sabe, de qualquer forma. Pensámos que conseguíamos fazer tudo e fazer tudo com amor mas nem sempre se consegue. Foi o medo daquilo que as pessoas iriam pensar quando se tem uma criança e o pai sofre de depressão. Sempre lhe disse que isso não era um problema. O Robert cuidou da Leila com amor, até ao fim. Depois da morte da Lara tudo nos aproximou. Tentei dizer-lhe que há sempre uma solução. Levava-o aos treinos. Queria ajudá-lo a ultrapassar tudo. Mas ele já não queria ajuda”, disse a mulher do guarda-redes no dia do funeral. Lara, a primeira filha do casal, morreu devido a uma problema cardíaco; em maio de 2009, seis meses antes de morrer, Enke e a mulher adotaram Leila. Foi o incontrolável medo de perder a filha que impediu o jogador de revelar que estava a lutar contra uma grave depressão.

Teresa Enke é fundadora e presidente da Fundação Robert Enke

Depressão essa que não era propriamente uma novidade. Ainda que o ano de 2009 tenha sido o mais complexo, existiram outros alertas ao longo do tempo: o ataque de pânico que teve logo depois de assinar pelo Benfica e que quase o fez desistir de se mudar para Portugal; a forma pouco saudável como reagiu ao facto de ser suplente de Víctor Valdés no Barcelona; o bloqueio que sofreu durante um jogo ao serviço do Fenerbahçe; o estado depressivo em que se afundou logo depois da morte da filha, em 2006. Tudo isso, embora com altos e baixos, culminou naquele dia há 10 anos porque se arrastou e avolumou como uma bola de neve. “Ele sofria de depressão e medo de falhar. Apesar de fazer terapia diária durante meses, não conseguiu evitar o suicídio”, explicou Valentin Markser, médico que acompanhou o guarda-redes na passagem pelo Barcelona. Segundo o especialista, Enke pediu desculpa à família e aos profissionais de saúde na carta que deixou por ter mentido deliberadamente de forma a fazê-los acreditar que estava melhor.

Dez anos depois, o mundo do desporto atravessa uma fase de viragem e de autêntica revolução no que toca à saúde mental. Se a NBA inovou com a criação de um plano obrigatório e transversal a todas as equipas para evitar e prevenir situações de risco, são cada vez mais os jogadores de futebol que revelam que ultrapassaram depressões, ansiedades, ataques de pânico. Buffon, Ederson e Marcelo estão entre os mais recentes mas também Gary Neville, Ferdinand e Iniesta já confessaram ter sofrido de situações semelhantes. Na Alemanha, o país de Enke, todas as academias de todos os clubes de futebol têm equipas de psicólogos e terapeutas preparadas para lidar com jovens jogadores e convencê-los, desde muito novos, de que é normal e aceitável admitir que não está tudo bem. No futebol profissional, porém, as coisas não são assim tão simples.

O guarda-redes representou o Benfica entre 1999 e 2002

“A base do problema é que tudo o que tem a ver com saúde mental ainda é abordado com ansiedade. Tem tudo a ver com a forma como as pessoas maquilham a própria mente. Tendem a tentar continuar a funcionar para lá do problema durante o maior período de tempo que conseguirem, mesmo quando já estão a sofrer. A dor mental é muito diferente da dor física”, explicou Marion Sulprizio, uma psicóloga desportiva, durante uma conferência organizada pela Fundação Robert Enke. A Fundação, criada por Teresa Enke, tem como objetivo combater o preconceito contra as perturbações mentais no desporto no geral e no futebol em particular e organiza várias ações de sensibilização para aprofundar o tema.

Há dois anos, por ocasião daquele que seria o 40.º aniversário de Enke, Teresa deu uma entrevista ao Telegraph onde revelou que o plano do alemão, depois de terminar a carreira, era regressar a Lisboa com a família e tornar-se treinador de guarda-redes no Benfica, onde passou “um dos períodos mais felizes”. Dez anos depois da morte de Enke, é Teresa quem tenta prolongar o legado do jogador para “quebrar o estigma, quebrar o tabu, mostrar que a doença mental é algo que pode ser curado e que não há nada de errado em admitir que temos um problema”, como explicou ao jornal inglês. Enke vive através da filha, que tem agora oito anos, através do futebol e através da memória de todos aqueles que a 10 de novembro de 2009 pararam em choque em frente a uma televisão, a uma rádio ou a um jornal. Mas vive principalmente através de Teresa, que o honra e homenageia nos mais simples pormaiores: como o facto de, há poucas semanas, ter enviado pessoalmente uma carta ao maquinista do comboio que acabou por atropelar o alemão. “Não sei o seu nome mas queria dizer-lhe que o Robbi nunca quis envolver mais ninguém na sua própria morte. Peço imensa desculpa. E sei que o Robbi diria exatamente o mesmo”, escreveu.