As organizações não-governamentais (ONG) Global Health Advocates e Corporate Europe Observatory acusam as grandes farmacêuticas envolvidas em parcerias público-privadas (PPP) com a União Europeia (UE) de terem impedido a investigação sobre coronavírus proposta por Bruxelas em 2018.

“Estamos indignados por encontrar provas de que o lóbi da indústria farmacêutica EFPIA [European Federation of Pharmaceutical Industries and Associations] não só não considerou o financiamento da bioprevenção (ou seja, estar pronto para responder a epidemias como a causada pelo novo coronavírus, covid-19), como se opôs a que a mesma fosse incluída nos trabalhos da IMI [Iniciativa de Inovação Médica] quando essa possibilidade foi levantada pela Comissão Europeia em 2018”, lê-se nas conclusões de um estudo a que a agência Lusa teve acesso.

Contactada pela Lusa, fonte oficial da Comissão Europeia (CE) sublinhou que está a ser investida “uma verba significativa de dinheiro em pesquisa e inovação na saúde, nas alterações demográficas e no bem-estar, assim como na sustentabilidade ambiental e na ação climática, com o foco nos desafios da sociedade e atacando as necessidades médicas e ambientais”.

Segundo o relatório “Mais privada do que pública: como as grandes farmacêuticas dominam a Iniciativa de Inovação Médica”, integrado num documento mais amplo denominado “Em nome da Inovação”, feito pela Global Health Advocates (GHA) e pelo Corporate Europe Observatory (CEO), a indústria farmacêutica beneficiou de 2,6 mil milhões de euros do orçamento público de investigação da UE no período compreendido entre 2008 e 2020, através da IMI, “mas até agora falhou em investir significativamente em áreas de pesquisa onde o financiamento é urgentemente necessário”.

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A GHA e o CEO sublinham que, entre as áreas negligenciadas que necessitavam de um financiamento significativo, estão “a prevenção para epidemias (incluindo as causadas pelos coronavírus), o HIV/sida, e as doenças tropicais relacionadas com a pobreza”, mas que, em vez disso, “a indústria farmacêutica usou sobretudo o orçamento para financiar projetos em áreas que eram comercialmente mais rentáveis”.

As duas ONG assinalam que, desde a aparição do coronavírus SARS, “um primo chegado do novo coronavírus”, em 2003, os investigadores têm pedido que seja acelerado o desenvolvimento de tecnologias médicas para combater este tipo de vírus. “Na verdade, já houve um ‘candidato promissor para tratar coronavírus em 2016’, mas não captou a atenção das grandes farmacêuticas para mais desenvolvimentos”, acusam as duas organizações sem fins lucrativos.

E acrescentam: “Só agora, com uma pandemia global em curso e quando existem fundos públicos mobilizados para combatê-la, é que a indústria está a mostrar vontade de ajudar a desenvolver vacinas e tratamentos”.

De acordo com as ONG, a indústria farmacêutica já tinha tratado o Ébola de forma semelhante, uma vez que só se dedicou à sua investigação quando o mesmo se tornou uma epidemia em 2014, e depois de a IMI ter começado a financiar projetos de pesquisa relevantes.

Esse caso mostra como intervenções tardias quando uma epidemia já está em andamento são muito menos úteis do que o tipo de bioprevenção que a indústria rejeitou”, vincaram.

Questionada pela Lusa, Marine Ejuryan, da GHA, considerou que, face à atual crise, “é expectável” que Bruxelas coloque a bioprevenção entre as prioridades do financiamento de projetos nas próximas PPP da área da investigação na saúde.

Contudo, realçou que “é demasiado pouco e demasiado tarde investir em epidemias após surgirem”, e que uma “resposta efetiva requer tempo e investimentos sustentáveis para garantir que existem as vacinas e tratamentos necessários quando surgem os surtos epidémicos”.

Sobre a postura das grandes farmacêuticas, a especialista considerou que “muitas multinacionais estão agora envolvidas na pesquisa da vacina e de tratamentos contra o coronavírus, uma vez que agora existem enormes quantias de financiamento público mobilizado na União Europeia e a nível global. Mas não necessariamente por razões altruístas”.

Por seu turno, Martin Pigeon, investigador do CEO, considerou que “já é tempo de a política de investigação e inovação da UE receber o escrutínio político e os debates que merece”, a bem do interesse público. “O que está em jogo aqui é a captura corporativa de grandes áreas da política e dos orçamentos de pesquisa da UE, às custas das necessidades públicas, da nossa saúde e da saúde do nosso planeta”, destacou.

E rematou: “O financiamento público da pesquisa e inovação é um investimento na produção de conhecimento e ferramentas para o futuro, e, num momento de crise em curso, acertar esses investimentos é mais crucial do que nunca.”

Bruxelas garante “regras rigorosas” nas PPP

“Dois relatórios exaustivos sobre as PPP da investigação na União Europeia (UE) mostram um ambiente institucional que assegura ‘privilégios e vantagens’ para o setor privado, e ‘deveres e obrigações’ para o setor público”, realçam a GHA e o CEO. As ONG assinalam que, durante os últimos 15 anos, os grupos de lóbi das indústrias da saúde e do ambiente “controlaram, dominaram e beneficiaram de 3,7 mil milhões de euros de fundos de investigação da UE destinados a medicamentos e ao clima através das PPP, à custa do interesse público”.

Em resposta às acusações, a Comissão Europeia afirma que garante que os programas de pesquisa e inovação que financia são alvo de “regras rígidas”, respeitando “totalmente” os valores da UE, e que as Parcerias Público-Privadas (PPP) seguem estes princípios.

Estamos a implementar regras rigorosas da UE, em total concordância com os valores da UE. Também estamos a tomar decisões de financiamento, consultando vários ‘stakeholders’ [partes interessadas], sempre colocando no topo da prioridade as necessidades de saúde e ambientais dos cidadãos”, disse à Lusa fonte oficial da CE. “Todas as críticas construtivas são bem-vindas e serão tidas em conta nas avaliações e propostas da próxima geração de PPP”, vincou Bruxelas.

Bruxelas frisa que “regista os relatórios” publicados pelo CEO e pela GHA, salientando que a UE está comprometida em atingir um crescimento “inteligente, sustentável e inclusivo” e que é nesse contexto que considera a pesquisa e a inovação com verbas comunitárias no futuro.

Bruxelas frisa que “regista os relatórios” publicados pelo CEO e pela GHA, salientando que a UE está comprometida em atingir um crescimento “inteligente, sustentável e inclusivo” e que é nesse contexto que considera a pesquisa e a inovação com verbas comunitárias no futuro.

As ONG assinalam que, durante os últimos 15 anos, os grupos de lóbi das indústrias da saúde e do ambiente “controlaram, dominaram e beneficiaram de 3,7 mil milhões de euros de fundos de investigação da UE destinados a medicamentos e ao clima através das PPP, à custa do interesse público”.

No documento das duas ONG, “Em nome da Inovação”, a que a Lusa teve acesso, que junta os relatórios “Mais privada do que pública: como as grandes farmacêuticas dominam a Iniciativa de Inovação Médica”, e “Investiga e Destrói, as fábricas da indústria bioeconómica ameaçam o clima e a biodiversidade”, as entidades destacam que há “implicações preocupantes para a defesa do interesse público” na gestão das PPP europeias, financiadas pelo dinheiro dos contribuintes.

Isto, desde a “negligência da preparação para pandemias, até à alimentação da desflorestação e das mudanças climáticas”, sublinham, vincando que as grandes empresas europeias pretendem manter esta situação no próximo orçamento da UE (sob o ‘Horizon Europe 2021-2027).

As nossas descobertas mostram que estas estruturas das PPP permitem às indústrias participantes controlarem a utilização de milhares de milhões de euros de fundos públicos de investigação, sem qualquer retorno claro e provado para os cidadãos da UE”, assinalam as ONG.

Segundo as organizações, o próprio desenho destas PPP, “ainda mais do que os abusos que foram documentados”, significa que, no setor da saúde e da bioeconomia, estas parcerias “não servem o interesse público, mas simplesmente o interesse de curto prazo dos industrialistas”. A GHA e o CEO enfatizam que, “mais do que apenas capturarem subsídios”, as PPP europeias (foram abordadas duas das sete no total) “não só consomem recursos valiosos em termos do financiamento da investigação pública, como mobilizam pesquisadores públicos para prioridades que não seriam as suas”.

Por isso, as ONG salientam que “a indústria define a agenda geral de investigação, os temas aceites para as propostas anuais de projetos, mas envolvem também muitos investigadores públicos”.

A GHA, com sede em França e na Índia, e o CEO, baseado em Bruxelas, acrescentam que, graças a estas PPP, “as indústrias conseguem determinar (parte da) agenda de investigação da UE, obtêm financiamento para os seus projetos com dinheiro dos contribuintes, conseguem ter mais cientistas e institutos de investigação a trabalhar nos seus projetos privados e, no final dos processos, mantêm em segredo os resultados e, ou, privatizam as conclusões”.

E realçam: “Numa altura em que a crescente consciência pública sobre a necessidade de sistemas de saúde públicos robustos, bem como sobre as mudanças climáticas, esta abordagem é muito contraprodutiva e uma forma de má governança.”