O analista português Nuno Rogeiro apontou esta quinta-feira que a Frelimo, poder em Moçambique, está a ser derrotada nos ataques armados em Cabo Delgado pelas mesmas táticas de guerrilha que usou contra o poder colonial, sinal de que perdeu o apoio popular.

“Esse é um dos paradoxos que é realçado no livro” que será lançado a 2 de junho, “O Cabo do Medo”, afirmou o autor, em entrevista à Lusa.

Nuno Rogeiro considera que, na província de Cabo Delgado (norte de Moçambique) – palco de ataques jiihadistas associados ao Estado Islâmico –, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) “está neste momento com uma batata quente nas mãos muito parecida com aquela que a administração portuguesa tinha entre [19]61 e 74”.

A província de Cabo Delgado, para onde estão previstos megaprojetos de gás natural, tem sido palco de vários ataques de terroristas, cujos ato estão a ser reivindicados pelo Estado Islâmico desde junho de 2019. Os ataques já causaram mais de meio milhar de mortos e 162 mil desalojados.

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A seguir à Guiné-Bissau, foi em Cabo Delgado que Portugal mais enfrentou resistência durante a guerra colonial, com bases no mato controladas pela Frelimo e apoio logístico da vizinha Tanzânia.

Entre Palma, para onde está prevista a exploração de gás, e Pemba, capital provincial, os grupos de combatentes islâmicos têm atacados localidades e decapitado opositores, num cenário de ausência do poder central que só a partir de abril começou a atuar com mais meios no terreno.

“As coisas resumem-se mais ou menos ao mesmo: de que lado está o povo?”, comentou Nuno Rogeiro, salientando que “não se ganha uma guerra subversiva contra o povo”.

Na guerra colonial, a “Frelimo, de certa forma, ganhou politicamente porque conseguiu conquistar parte das mentes dos moçambicanos”, uma vitória que alienou pouco depois com a criação de campos de reeducação e uma repressão sobre opositores que levou a uma guerra civil.

Hoje, apesar de Maputo ter “instrumentos de segurança, instrumentos técnicos e equipamentos suficientes” para lidar com os combatentes islâmicos na província mais a norte do país, a Frelimo “dá a ideia que realmente esqueceu tudo aquilo que tinha aprendido durante a guerra de guerrilha” e “está hoje numa situação em que parece não compreender a mente do guerrilheiro”.

“Um dos grandes problemas das forças de segurança neste momento é distinguir quem é quem”, para diminuir os riscos de baixas civis, alertou Nuno Rogeiro, considerando que Moçambique “tem de ser mais sofisticado, tem de ter mais meios, mais equipamento e ser mais inteligentes na maneira de lidar com esta crise”.

“O exército moçambicano e a polícia moçambicana estavam transformados em forças de ordem pública” e mostraram que “não eram capazes de combater uma guerra de guerrilha”, considerou o analista.

Dentro da Frelimo há a consciência de que não se vai ganhar só com as armas não só porque essas armas não existem, mas também porque é impossível” vencer sem o apoio da população, alertou o analista.

No seu livro, editado pela D. Quixote, Nuno Rogeiro explica o nascimento daquilo que considera ser o Estado Islâmico Província da África Central (EIPAC), que se aproveita do descontentamento popular para tentar controlar a província.

O objetivo do Estado Islâmico é tornar “Cabo Delgado num estado independente de Moçambique”, aproveitando o crónico abandono do território por parte de Maputo.

O “Daesh é um caçador de novos talentos e encontrou-os em Moçambique”, um país que consideram ser o mais favorável à instalação de um califado no leste de África.

“Eles tentaram tomar Pemba e falharam”, mas “acham que podem viver durante uns anos naquela zona central entre Quissanga até Palma”, sustentou, acrescentando: “É um dos seus sonhos, poderem viver numa situação de caos e impor a sua lei fora dos grandes centros urbanos”.

Trata-se de “um conflito que Moçambique não estava à espera, mas há elementos de esperança”, disse, apontando a decisão das empresas de exploração de gás natural de se manterem no local.

Os grupos nascem de descontentamento local, mas são orientados e formados a partir de bases de extremismo islâmico na vizinha República Democrática do Congo, o que “transforma o problema Moçambique num problema regional”.

A “indústria de liquefação de gás natural torna este combate mais confortável para Moçambique porque dá visibilidade” e assegura canais de apoios, explicou. Por outro lado, se “Cabo Delgado fosse uma zona sem qualquer interesse estratégico talvez não tivesse a atenção do Daesh”.

Mas, para combater este fenómeno, é necessário atacar a raiz do descontentamento, aumentando o peso do Estado na zona e tratando a população com justiça, assegurando a “repartição dos rendimentos que virão do gás natural”, avisou. “Cabo Delgado é a província mais pobre, mas a que tem mais riqueza”, salientou.