A carta é longa, mas a resumir-se numa ideia seria esta: não se combatem ideias, por mais absurdas que sejam ou por mais que delas se discorde, silenciando-as. É esse o ponto central de uma carta aberta revelada publicamente esta terça-feira e assinada por mais de 150 escritores, jornalistas, académicos e intelectuais, que alertam para a importância de garantir e promover a liberdade de expressão e o debate franco e aberto para promover avanços sociais e culturais.

Da lista de subscritores da carta, publicada na revista britânica Harper (“Harper’s Magazine”), fazem parte o escritor inglês Martin Amis, a escritora canadiana Margaret Atwood, o escritor nascido na Índia mas também com nacionalidade britânica Salman Rushdie, o escritor irlandês John Banville e a escritora J. K. Rowling (autora da saga Harry Potter), por exemplo.

Entre os restantes subscritores (pode ver a carta e a lista na íntegra aqui) estão personalidades como o pensador e intelectual de esquerda Noam Chomsky, o cientista e economista político conservador Francis Fukuyama, o trompetista e compositor de jazz Wynton Marsalis, o escritor (especializado em temas políticos, culturais e sociológicos) Andrew Solomon, a jornalista Cathy Young e o jornalista da revista New Yorker Malcolm Gladwell.

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Na carta aberta, os seus subscritores começam por referir-se aos protestos recentes “por justiça social e racial”, acentuados pelo movimento Black Lives Matter. Notando que estes originaram pedidos não apenas de reformas nos modos de funcionamento das forças de segurança mas de “maior igualdade”, as personalidades que assinaram a carta vincam que se trata de um “acerto de contas necessário” mas olham também para alguns efeitos paralelos pouco benéficos.

Este movimento por um “acerto de contas necessário” também intensificou, alertam estes escritores, jornalistas, artistas e académicos, “um conjunto novo de atitudes morais e compromissos políticos que tendem a enfraquecer as nossas normas de debate aberto e de tolerância face às diferenças, em detrimento de uma conformidade ideológica”.

Na carta, lê-se ainda a tese de que “as forças que se opõem às liberdades estão a robustecer-se pelo mundo e têm um aliado poderoso em Donald Trump, que representa uma ameaça real à democracia”. Porém, “à resistência não pode permitir-se que se endureça nos seus próprios dogmas e coerções — que os demagogos de extrema-direita já estão a explorar”.

A inclusão democrática que queremos só pode ser alcançada se denunciarmos e se nos opusermos ao clima de intolerância que se estabeleceu em todas as partes [em disputa]”, lê-se.

Para os subscritores desta carta, “a livre troca de informação e ideias”, que é “a força vital de uma sociedade que promove as liberdades”, está “a tornar-se todos os dias mais constrangida e condicionada”. E também a censura “está a espalhar-se mais amplamente na nossa cultura”, manifestando-se através de “uma intolerância a pontos de vista contrários” mas também “através da moda de envergonhar e ostracizar outros em público” e na “tendência para dissolver questões políticas complexas em certezas morais que tudo cegam”.

Os subscritores defendem aqui os valores “do contra-discurso robusto e até cáustico de todos os quadrantes” da sociedade, alertando para o quão comum se estão a tornar os pedidos para “castigos rápidos e severos” em casos de “perceção de transgressão de pensamento e expressão” por alguém.

Leem-se ainda críticas aos “líderes institucionais” que numa tentativa de “controlo de danos” alimentada pelo “pânico”, estão a aplicar punições precipitadas e desproporcionais a pessoas por delito de opinião. Eis alguns exemplos: “Editores estão a ser despedidos por publicarem textos controversos; livros estão a ser retirados por alegada falta de autenticidade; jornalistas estão impedidos de escrever sobre certos assuntos; professores estão a ser investigados por citarem determinadas obras literárias em salas de aula”.

Para estas personalidades, tem havido um nítido e constante “estreitamento das fronteiras do que pode ser dito sem a ameaça de represálias” e já se está a pagar o preço disso, com “uma aversão maior ao risco de escritores, artistas e jornalistas , que temem pelos seus meios de subsistência se fugirem aos consensos estabelecidos, ou até se não forem suficientemente zelosos na procura de acordos”. Ora, “a restrição do debate, seja por um governo repressivo seja por uma sociedade intolerante, invariavelmente fere aqueles que não têm poder e torna todos menos capazes de participar democraticamente”.

A forma de derrotar más ideias é através da exposição, dos argumentos, da persuasão, não é tentando silenciá-las ou afastá-las para longe. Recusamos qualquer falsa escolha entre justiça e liberdade — dependem uma da outra para existir”, referem os subscritores.

“Como escritores, precisamos de uma cultura que nos dê espaço para experimentar, para correr riscos e até para cometer erros (…). Precisamos de preservar a possibilidade do desacordo em boa fé sem que esse desacordo resulte em consequências profissionais terríveis”, escrevem ainda as 153 personalidades.

No seguimento dos protestos pelo fim da desigualdade de tratamento por motivos raciais, que começaram nos Estados Unidos da América devido à morte de mais um americano negro desarmado pela polícia — George Floyd —,  sucederam-se episódios um pouco por todo o mundo de destruição e vandalismo de estátuas de figuras associadas ao colonialismo ou cuja importância e contributo para a história têm vindo a ser alvo de revisão nos últimos anos.

Também na arte alguns pensadores têm expressado receios de uma higienização da produção cultural, que redunde em obras ascéticas e num público incapaz de um consumo cultural que não seja literal e ideologicamente centrado.