Narrativas baseadas em factos reais, enredos policiais com Lisboa em pano de fundo, documentários em ambientes urbanos e suburbanos, foco em histórias humanas ou na primeira pessoa. É este o tom geral de alguns projetos vencedores do Concurso de Escrita e Desenvolvimento de Argumento organizado pela plataforma de streaming Netflix com o apoio do Instituto Português do Cinema e do Audiovisual (ICA). Os resultados foram conhecidos na segunda-feira e desde então paira algum mistério sobre o assunto.

Os vencedores foram divididos em dois grupos: cinco recebem 25 mil euros cada (um documentário e quatro de ficção, descritos como “os cinco melhores”) e outros cinco recebem seis mil euros cada (dois documentários e três de ficção). A lista de autores inclui nomes bastante conhecidos dos portugueses. É o caso do artista visual Vhils, que propôs o argumento de um documentário intitulado Paredes Brancas, Povo Mudo, em conjunto com André Costa, Catarina Crua e Ricardo Oliveira. É também o caso da jornalista Sofia Pinto Coelho, com um projeto de documentário chamado My Name is Jorge: A Redemption Story, ou ainda de Luísa Costa Gomes, cuja proposta, tanto quanto a sinopse permite perceber, é baseado em Cláudio e Constantino: Novela Rústica em Paradoxos, que a escritora publicou em 2014 pela Dom Quixote.

Apesar de a Netflix estar a apoiar a escrita de argumentos através deste concurso, num total de 155 mil euros, aparentemente não está obrigada a concretizá-los, ou seja, eles podem ou não resultar numa produção. “A Netflix, a seu exclusivo critério, pode ter a iniciativa de continuar a apoiar um ou alguns dos cinco melhores projetos, sem assumir nenhuma obrigação presente a esse respeito”, diz o regulamento, que acrescenta: “Caso a Netflix não prossiga com o apoio a algum dos projetos, os autores mantêm todos os direitos sobre a obra.”

Esta é uma das razões pelas quais os premiados mantêm por agora alguma reserva sobre conteúdo dos seus argumentos: se a Netflix não avançar, eles podem apresentar os respetivos textos a outras produtoras. “O melhor para o projeto é mantê-lo sob mistério enquanto aguardamos uma possível demonstração de interesse por parte da Netflix”, comentou um dos concorrentes. “Enquanto o projeto não avançar efetivamente desejamos continuar a trabalhar nele com a maior discrição possível”, disse outro.

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Uma concorrente deixou um desabafo com esperança: “Para já, temos uma profunda incógnita. Suponho que a Netflix possa chamar alguns concorrentes e dizer que está interessada em produzir.” Na ideia de quase todos está a hipótese de virem a trabalhar com os meios financeiros e humanos do gigante americano do streaming, meios esses muito além dos existentes no mercado audiovisual da maior parte dos países.

O Observador pediu informações ao departamento de comunicação da empresa, para tentar perceber o porquê desta iniciativa em que os argumentistas vencedores podem não ver o projeto filmado pela promotora do concurso.

A Netflix não quis fazer comentários e enviou uma “citação oficial” atribuída a Diego Ávalos, vice-presidente da área de Conteúdos Originais da Netflix, segundo o qual “este concurso abrirá novas janelas de inspiração e oportunidades para os criadores”. A citação é igual à que surgiu em fins de abril num comunicado da empresa de Los Angeles. Ficou também por responder uma pergunta sobre se a Netflix prevê lançar concursos idênticos num futuro próximo.

Uma das vencedoras explicou que encara esta iniciativa como “uma bolsa de escrita” para desenvolvimento da proposta agora distinguida. “Neste caso, o dinheiro equivale a tempo. É uma oportunidade fantástica e muito importante, porque assim tenho tempo para desenvolver os episódios e transformar num produto literário acabado a ideia que levei a concurso”.

Um dos requisitos exigidos pela Netflix era precisamente a “planificação e calendarização indicativa dos trabalhos de escrita e desenvolvimento”. Os argumentistas tinham também de apresentar o “argumento relativo ao episódio-piloto” ou o “guião completo e finalizado do primeiro episódio”, o que mostrava que o concurso é apenas o início do desenvolvimento dos projetos de escrita, que podem agora ser finalizados pelos autores com a ajuda do dinheiro atribuído pela plataforma de streaming. Não são conhecidos os prazos de entrega dos argumentos finais.

[João Nuno Pinto, um dos vencedores, apresentou em janeiro no Festival de Roterdão a longa-metragem Mosquito]

1200 concorrentes foram admitidos, mas só 10 chegaram ao fim

A lista dos vencedores deveria ter sido divulgada antes de 30 de julho — era este o prazo inscrito no regulamento — mas “devido ao elevado número de candidaturas recebidas” e à “necessidade de uma correta e apurada análise de todos os projetos” só na segunda-feira, 10, é que os nomes foram conhecidos, informou o ICA no seu site.

Os vencedores principais, que vão receber 25 mil euros, foram:

  • Finisterra (ficção), de Guilherme Branquinho e Leone Niel,
  • My Name is Jorge: A Redemption Story (documentário), de Sofia Pinto Coelho,
  • O Chefe Jacob (ficção), de Raquel Palermo e João Lacerda Matos,
  • Rabo de Peixe (ficção), de Augusto Fraga, Marcos Castiel e André Szankowski,
  • Victoria (ficção), de Dinis M. Costa.

Os restantes cinco, para os quais vão seis mil euros, foram:

  • Barranco de Cegos (ficção), de Luís Filipe Rocha,
  • Cleptocracia (ficção), de João Brandão,
  • Paradoxa (ficção), de Luísa Costa Gomes,
  • Paredes Bancas, Povo Mudo (documentário), de Vhils (Alexandre Farto), André Costa, Catarina Crua e Ricardo Oliveira,
  • This is Not a Kanga (documentário), de João Nuno Pinto, Fernanda Polacow e Bruno Morais Cabral

O concurso teve nada menos do que 1200 candidatos admitidos. Alguns dos projetos rejeitados tinham títulos curiosos como Os Filhos Alienados de Rilhafoles, Pãotugal — Uma História do Pão em Portugal, SSC: Sociedade Secreta Covid, Meu Amado Hipocondríaco, Restaurante do Engate ou ainda O Rapaz que Queria ser Nijinsky.

De entre os 1200, o ICA pré-selecionou apenas dez, através de um júri composto por Verónica Fernández (diretora de conteúdos originais da Netflix Espanha), Luís Proença (do departamento de comunicação Fundação Calouste Gulbenkian), Possidónio Cachapa (escritor e realizador), Isabel Lucas (jornalista e tradutora) e ainda Jorge Paixão da Costa (realizador e professor). Os dez finalistas foram depois remetidos à Netflix, que ao ordenou em dois grupos vencedores.

O Concurso de Escrita e Desenvolvimento de Argumento decorreu entre 30 de abril e 1 de junho e segundo o regulamento destinou-se “à atribuição de apoio financeiro a projetos singulares de séries de ficção ou documentário, em fase de escrita e desenvolvimento”. Puderam participar autores e argumentistas com residência em Portugal, desde que as propostas fossem inéditas, ou seja, ainda por concretizar.

Eis as quatro sinopses cuja divulgação foi autorizada pelos finalistas.

Rabo de Peixe, de Augusto Fraga, Marcos Castiel e André Szankowski [ficção]

“Uma série de ação dramática com toques de surrealismo e humor negro, escrita pelo realizador Augusto Fraga, pelo editor Marcos Castiel e pelo diretor de fotografia André Szankowski.”

Marcos Castiel tem currículo de edição de filmes publicitários de grandes marcas internacionais (DR)

O Chefe Jacob, de Raquel Palermo e João Lacerda Matos [ficção]

“Lisboa, 24 de Dezembro de 1873. Piedade é esfaqueada e atirada para o Beco da Barbaleda, no meio de uma tempestade. Condenada a morrer numa noite santa, mente à polícia, tentando proteger a identidade do seu assassino. Meses depois, o caso ainda sem resolução é entregue ao Chefe Jacob, um dos melhores agentes da polícia secreta de Lisboa, conhecido por nunca desistir de um desafio difícil. Entretanto, a criminosa Giraldinha circula pelas ruas da cidade, usando as botas da falecida… A série acompanha o trabalho de Jacob na resolução deste e de outros crimes. Baseado em factos verídicos.”

Cleptocracia, de João Brandão [ficção]

“Alex Reis era um excecional agente da unidade de cibercrime da Polícia Judiciária. Desiludido com a eficácia do seu trabalho no combate à corrupção, demite-se e usa os seus talentos tecnológicos para roubar uma avultada quanta de dinheiro sujo, com que financia um grupo de intervenção privado. Alex recruta quatro soldados que, tal como ele, viram as suas vidas lesadas por acontecimentos resultantes de corrupção. Com precisão militar e métodos violentos, os cinco Demónios semeiam o terror entre os corruptos e mergulham o país num turbilhão social, político e judicial.”

Paradoxa, de Luísa Costa Gomes [ficção]

“Estamos num lugar inventado, num tempo inventado. Cláudio e Constantino, dois rapazes de oito e dez anos vivem com a família nobre e os criados num enorme palácio, numa quinta isolada ao pé de um rio. O pai partiu para a guerra e os dois irmãos vão encontrando, um pouco ao abandono, situações e experiências que constituirão a sua educação cognitiva e moral. Pela tematização dos grandes paradoxos clássicos, Cláudio e Constantino aprendem a pensar fazendo perguntas.”