A forma como nos ajustamos às circunstâncias é um processo tão relativo quanto pessoal. Numa edição da ModaLisboa, a número 55, em que são notícia as apresentações adaptados a um novo contexto, as coleções mais curtas, o regresso às origens e as novas possibilidades digitais, Luís Carvalho, o designer de 33 anos sediado em Vizela, no distrito de Braga, entra na via em contramão.

Pisou a passerelle com mais de 30 coordenados, não poupou a equipa de bastidores ao contrarrelógio de trocas a meio do desfile (consta que é o único a fazê-lo) e nem faltaram as habituais caras mediáticas na primeira fila, a única nos caminhos de gravilha que serpenteiam pela estufa fria — Cláudia Vieira, Inês Castel-Branco, Iva Domingues, Raquel Strada, Sónia Balacó e por aí fora. Enquanto o mundo repensa e tende a dosear, Luís veio com tudo.

Ombros descobertos no desfile de Luís Carvalho © Melissa Vieira/Observador

“No início, ia limitar um pouco a coleção, mas depois achei que não fazia sentido. Estive tanto tempo a fazer coisas que não me deram este gozo, que decidi aproveitar este momento para fazer aquilo de que realmente gosto”, partilha o designer com o Observador. E quando o diz, fala de desta coleção em concreto, à qual deu o nome de “Bright” e onde a evolução da silhueta Luís Carvalho é flagrante. Mais desportiva, focada em realçar ombros e em busar do elemento peplum até criar uma espécie de sobreposição de saias. “Acima de tudo, é a desconstrução do clássico, precisamente, uma das coisas que me dá mais gosto”, adiciona.

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Ao mesmo tempo, sobressaem os traços mais distintivos. A manipulação da alfaiataria dá origem a peças tão diversas como um longo colete em risca de giz, usado por um manequim masculino, ou um vestido de baile no mesmo material das clássicas camisas executivas. A gota de água é este blazer em lantejoulas, de corte reto, usado ao contrário — a ausência de decote à frente, é compensada pela lapela que afunda nas costas. Na escolha de cores, uma serenidade do branco, do cru e do azul-marino, apenas perturbada na fase final com um cor-de-rosa florescente.

Para Luís Carvalho, o futuro dificilmente passará pelos formatos digitais. Ele está precisamente do outro lado, no toque e na multissensorialidade, na harmonia formada entre o guarda-roupa do próximo verão e as espécies botânicas da estufa. Só assim se sentem as peças em crochet branco ou os coordenados quase campestres em bordado inglês, elementos que ao designer nunca tinha ocorrido usar.

O crochet e o bordado inglês foram as grandes novidades da coleção “Bright”. O designer usou estas técnicas pela primeira vez © Melissa Vieira/Observador

“Mais tarde, posso pensar em ter algumas peças mais acessíveis. São soluções que temos de experimentar para recuperar. Estamos desde abril sem faturar. Não há clientes, não há festas, não há casamentos. Espero que a retoma venha no próximo ano, mais tempo ninguém aguenta”, desabafa. As encomendas começaram a cair logo no final de março, mas Luís trabalhou noutras frentes e manteve a marca à tona, sem nunca sequer questionar a sua presença aqui, na histórica edição 55. O impacto do vírus é real, mas ele, o último a desfilar esta sexta-feira, desceu à capital para se mostrar ilimitado, mesmo perante a adversidade.

Noivas, aventureiros e um manifesto pela civilização

Béhen, marca criada há cerca de um ano por Joana Duarte, desfilou pela primeira vez na ModaLisboa. O upcycling de colchas, toalhas e, nesta coleção em particular, vestidos de noiva pode, enquanto memória descritiva, causar calafrios aos gostos menos maleáveis. O que se viu na prática foi uma amostra, em tom de provocação, do quão sexy o enxoval de uma avó pode ser em 2020. Sobre o reaproveitamento, a debutante fez a sua arte — desafiou RAF, artista urbano, a pintar vestidos de noiva dos anos 80 convertidos em tops, costurou malas virais e aplicou cristais Swarovski sobre bordado Madeira. Das duas uma: ou a cabeça explode ou é amor à primeira vista.

O dia ficou ainda marcado pela estreia da marca Béhen no calendário de desfiles © Melissa Vieira/Observador

O dia foi dominado pelo Lab, espaço reservado a novos criadores, ainda em fase de consolidação dos seus projetos. Seguiu-se Duarte, a marca que, ano após ano, tem vindo a ganhar expressão no sportswear. Num equilíbrio constante entre a robustez exigida pelas atividades outdoor e o conforto necessário para uma vida em casa, foi com a cor que a designer colou as partes.

“O ponto de partida foi a colaboração que fizemos com a Exceed”, explica. Da nova coleção de calçado, Ana Duarte partiu para o resto do guarda-roupa, uma viagem que, em pleno confinamento, a levou para o outro lado do mundo. “Fui às minhas pesquisas e encontrei uns eucaliptos arco-íris”. O estampado surgiu diretamente dos troncos desta espécie multicolor, a coleção desenrolou-se como um trilho de hiking pela ilha havaiana de Maui.

Duarte coloriu a passerelle com uma coleção inspirada nos eucaliptos arco-íris © Melissa Vieira/Observador

Tem sido com sweatshirtshoodies, impermeáveis e macacões (mas também com uma forte aposta nas peças unissexo) que a Duarte se tem ancorado no mercado. A pandemia podia ter sido mais severa para esta marca portuguesa. A quebra de vendas foi notória — sobretudo sem o mercado dos casamentos — mas o acumulado da faturação de 2020 já superou os valores do ano passado por esta altura.

Num exercício de depuração encontrámos Constança Entrudo. O sintoma é o que a une a um vasto coro mundial de designers e criativos: a vontade de regressar a uma origem ou de revisitar um arquivo. Num momento em que os efeitos da pandemia nesta área se multiplicam, Constança só quer puxar o foco para os materiais. “Durante a quarentena, passei muito tempo sozinha no estúdio. Comecei a perceber que trabalho muito o material, mas que, muitas vezes, o padrão e a cor ofuscam essa base”, explica.

Constança Entrudo optou por uma apresentação estática. Foi o público que circulou pela estufa © Melissa Vieira/Observador

O confinamento trouxe-lhe tempo e o tempo deu-lhe perspetiva sobre o próprio trabalho. Menos cor e mais margem para perceber técnicas e texturas foram o primeiro passo. “[A pandemia] teve um papel fundamental no meu trabalho, mas acho que os resultados ainda estão para vir. Isto foi uma adaptação a uma nova realidade, vamos todos sentir mudanças nos próximos dois, três anos”, conclui.

Pela Estufa Fria passou ainda a Awaytomars. Na estação em que se esperava o resultado da tão anunciada colaboração com a Missoni, o coletivo optou por dar lugar à performance. Ao vivo, onze artistas criaram peças para refletir sete temas considerados decisivos para a sobrevivência da civilização. A partir do resultado final, será desenhada uma coleção cápsula, a primeira a atingir a neutralidade carbónica, cujas vendas revertem na totalidade para os autores e para sete ONGs.

Awaytomars trocou o desfile convencional por uma performance, com 11 artistas da intervir sobre as peças © Melissa Viera/Observador

Com uma rede de criativos espalhada pelo mundo e que sempre funcionou de forma remota, a Awaytomars está, desde o primeiro dia, desenhada para o confinamento. “As pessoas estavam em casa sem fazer nada e a Awaytomars passou a ser uma opção para se distraírem, para terem um dinheiro extra ou para se expressarem criativamente. A gente teve muito mais envolvimento da comunidade nos últimos seis meses do que teve no passado. Por isso é que decidimos atrasar a Missoni”, esclarece Alfredo Orobio, diretor criativo da marca. Mas parece que a revelação está para breve. Este sábado, a Awaytomars anuncia os finalistas do projeto, escolhidos entre dezenas de criativos que desenharam peças para a colaboração.

Durante o fim de semana, a ModaLisboa continua a dar palco à moda nacional. No sábado, esperam-se os desfiles de Kolovrat, Ricardo Andrez e Nuno Gama e ainda o anúncio dos finalistas do concurso Sangue Novo. Até lá, na fotogaleria, veja as imagens que marcaram este segundo dia de desfiles.