Lucília Gago refuta qualquer tentativa de controlo político com a diretiva que visa reforçar os poderes hierárquicos no Ministério Público e que foi emitida a 12 de novembro do ano passado. “Esta diretiva consagra na prática” as ordens hierárquicas que sempre estiveram previstas na lei e visa promover “a transparência e a legalidade ” com o registo escrito das respetivas ordens por parte do superior hierárquico, explicou a procuradora-geral.

Gago fez questão de afirmar que a “autonomia externa do MP face ao restantes órgãos do Estado está consolidada e é absolutamente essencial em nome da separação de poderes”. “Não há razão para os senhores deputados ficarem preocupados e apreensivos ao exercício de poderes que incumbem à magistratura do MP”, enfatizou.

A audição parlamentar surgiu na sequência da polémica criada em dois momentos pela intenção de Lucília Gago de regulamentar as ordens hierárquicas. Em fevereiro de 2020 foi obrigada a colocar o projeto de diretiva na gaveta após grande polémica suscitada pelos partidos da oposição e pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP). Mas a diretiva avançou mesmo a 12 de novembro de 2020, apoiada em dois pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR).

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De acordo com tal documento, que na prática configura uma ordem da procuradora-geral da República que tem de ser seguida por todas as estruturas do MP, os poderes hierárquicos foram reforçados tendo em vista a autorização de diligências (como a constituição de arguido, buscas, interceções telefónias, etc.) e a avocação de inquéritos quando os procuradores titulares dos mesmos se recusarem a seguir as ordens dos respetivos chefes diretos. A ordem emitida por Lucília Gago vai ao ponto de especificar expressamente os “processos que tenham, ou se preveja que venham a ter, repercussão pública” como sendo os principais alvos destas medidas, lê-se na diretiva n.º 4/20 publicada no site da Procuradoria-Geral da República (PGR).

A diretiva da procuradora-geral está a ser contestada de forma intensa pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) que entende que Lucília Gago terá alegadamente “usurpado matéria da competência exclusiva” da Assembleia da República. E está a colocar a em causa o “regime de transparência dos processos-crime” por promover a criação de um “processo penal paralelo”, afirmou o procurador António Ventinhas, líder do SMMP no dia 4 de dezembro de 2020 à saída de uma audiência com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

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Todas estas críticas foram recordadas pelos deputados da oposição, nomeadamente por Telmo Correia (CDS), Carlos Peixoto (PSD), José Manuel Pureza (Bloco de Esquerda) e Inês Sousa Real (PAN), tendo Lucília Gago refutado as mesmas.

Falando até em “propósitos sinistros” (que não especificou) nas críticas que lhe foram dirigidas, a procuradora-geral explicou que a necessidade da diretiva surgiu após a polémica suscitada pelas ordens de Albano Pinto, diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), aos magistrados titulares do caso Tancos para não ouvirem como testemunhas o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa.

“Falava-se de ordens ocultas, escondidas numa gaveta. A diretiva vem clarificar e dar mais transparência com absoluta clareza” a qualquer processo de ordens hierárquicas, afirmou, enfatizando que as ordens de Albano Pinto respeitaram a lei.

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Aliás, Lucília Gago fez questão de negar a intenção de controlar politicamente as investigações — uma das críticas que foram dirigidas à procuradora-geral. “A autonomia externa do MP face ao restantes órgãos do Estado está consolidada e é absoluta desde 1992, altura em que o ministro da Justiça deixou de poder dar ordens genéricas ao procurador-geral. É uma autonomia absolutamente essencial em nome da separação de poderes”, afirmou.

“Outra coisa”, diz, “é a autonomia interna dos magistrados do MP”. E aqui a procuradora-geral não tem dúvidas de que a lei permite que os superiores hierárquicos possam dar ordens sobre a orientação do inquérito aos magistrados sobre a sua direta dependência. “A autonomia interna tem de ser vista de uma forma equilibrada à luz da estrutura hierarquizada do MP”, enfatiza.

“Eu não sou a lei. Nem tenho nenhuma pretensão de o ser”

Um dos aspetos mais criticados da diretiva, nomeadamente pelo SMMP liderado pelo procurador António Ventinhas, tem sido o dossiê de acompanhamento que foi agora criado e que regista não só as ordens hierárquicas dadas, como a eventual rejeição em seguir tais ordens do procurador titular do inquérito. O sindicato diz que a diretiva é inconstitucional devido a esse dossiê e Ventinhas chegou a acusar Lucília de substituir-se à lei: “não podemos aceitar viver num Estado em que a senhora procuradora-geral pensa que a ‘Lei sou eu'”, afirmou.

Lucília Gago respondeu esta tarde no Parlamento: “Eu não sou a lei. Nem tenho nenhuma pretensão de o ser”, disse. A procurador-geral recusa qualquer inconstitucionalidade, explicando que os dossiês de acompanhamento não interferem com a lei processual penal.

“Causa-me perplexidade que o dossiê de acompanhamento possa ser encarado por alguns com estranheza porque é algo absolutamente normal”. E porquê? “Porque visa registar a ordem escrita do superior hierárquico e executar atribuições do MP estipuladas pela lei orgânica. Os registos só devem existir quando há divergência entre o hierarca e o procurador titular do cargo”, diz.

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A diretiva foi precedida de dois pareceres do Conselho Consultivo da PGR que garantiram que os superiores hierárquicos têm o direito de emitir “diretivas, ordens e instruções” concretas sobre determinadas diligências processuais, sendo que os subordinados (os procuradores titulares dos inquéritos) apenas têm o direito de desobedecer no caso de uma “ordem ilegal” ou de “grave violação da consciência jurídica” — que terá de ser devidamente fundamentada pelo magistrado em causa, sob pena de sanção disciplinar.

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Com a diretiva de Lucília Gago, fica igualmente claro que os magistrados que lideram as investigações são agora obrigados a informar o seu chefe de todos os “atos processuais relevantes que tenham, ou se preveja venham a ter, especial repercussão pública.”

A procuradora-geral explicou no Parlamento que os critérios “especial repercussão pública” ou “pessoas com exposição pública” já existem em diversas leis, nomeadamente nas leis de combate ao branqueamento de capitais que estipula obrigação de informação da parte do sistema financeiro sobre transações suspeitas de “pessoas politicamente expostas” e dos respetivos familiares.

Reconhecendo que os magistrados têm o direito de recusar ordens ilegais e aquelas que violem a sua consciência jurídica, a procuradora-geral deu o seu próprio exemplo de uma carreira de 40 anos para enfatizar que a existência de ordens hierárquicas é uma exceção — não é a regra.

“Este mecanismo pode vir a ter expressão prática — não digo que não tenha porque senão não haveria necessidade de regulamentar esta matéria. Mas tendencialmente este instrumento terá uma aplicação absolutamente residual. O MP tem uma grande capacidade de concertação”, disse.

“Não há razão para os senhores deputados ficarem preocupados e apreensivos ao exercício de poderes que incumbem à magistratura do MP”, enfatizou.

Respondendo à deputada Joacine Katar Moreira, Lucília Gago recusou a intenção de suspender a diretiva — que já está em vigor — e foi perentória ao afirmar que “não houve nenhuma intenção de criar uma hierarquia mais musculada ou de afrontamento de magistrados ligadas a estruturas sindicais. Houve, sim, um propósito clarificador”, com respeito para um bom ambiente entre os diversos escalões do MP.

“Quando estamos a falar de autonomias não podemos fazer equivalências entre os magistrados do MP e a independência dos magistrados judiciais. Por ser sensível, porventura alguns poderiam não querer ver tratada essa matéria. Mas isso é alguma que me transcende”, concluiu.