Os números eram animadores. De acordo com um estudo preliminar pré-publicado pela revista científica The Lancet, na noite de terça-feira, uma única dose da vacina Oxford/AstraZeneca seria suficiente para prevenir até dois terços das transmissões do vírus SARS-CoV-2. Esta seria a primeira vez que uma vacina contra a Covid-19 demonstrava reduzir a transmissão do vírus, como referiu o jornal The Telegraph.

Uma análise mais atenta do artigo mostra, no entanto, que esta conclusão não é suportada pelos dados recolhidos ou pela análise feita pela equipa de investigadores, que representam 38 instituições diferentes. Investigadores ouvidos pelo STAT News, e que não participaram no estudo, dizem que a conclusão não pode ser tirada e que o salto foi demasiado grande.

Apesar de os estudos de transmissão, por si, não terem sido incluídos na análise, foram obtidas amostras de voluntários todas as semanas no estudo do Reino Unido, independentemente dos sintomas, para permitir avaliar do impacto da vacina no risco de infeção e, portanto, usá-lo como um substituto para a avaliação de uma potencial transmissão”, escrevem os autores do artigo.

A possibilidade de uma dose da vacina poder reduzir em 67% a transmissão do vírus SARS-CoV-2 — ideia reforçada pelo comunicado de imprensa da AstraZeneca — espalhou-se como um rastilho de pólvora na imprensa internacional, citada esta quarta-feira pelo Observador, que, assim, também noticiou a alegada conclusão não comprovada pelo estudo.

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Segunda dose dada mais tarde é mais eficaz

O verdadeiro objetivo do artigo, ainda em pré-publicação e a aguardar a revisão por cientistas independentes, era demonstrar se a vacina continuava a ser eficaz mesmo que a segunda dose fosse dada não ao fim de quatro semanas, mas ao fim de 12 (três meses) — como o Reino Unido já estava a fazer, para aumentar o número de pessoas que tomaram, pelo menos, a primeira dose.

A conclusão foi inesperada: “A análise mostra que a eficácia da vacina é maior quando há um intervalo maior entre a primeira e a segunda dose”. Uma eficácia de 82,4% quando a segunda dose é dada ao fim de 12 semanas, escrevem os autores. Mais: “Uma única dose é altamente eficaz durante os primeiros 90 dias”. Com estes resultados, os investigadores dão apoio total à política que está a ser seguida pelo governo britânico e fornecem um alívio aos problemas de produção da AstraZeneca — também representada entre os autores do estudo.

Os programas de vacinação com o objetivo de vacinar uma grande proporção da população com uma única dose, com uma segunda dose administrada após um período de três meses, podem ser uma estratégia eficaz para reduzir a doença e podem ser ideais para o lançamento de uma vacina contra a pandemia quando os fornecimentos a curto prazo são limitados”, escrevem os autores.

A grande limitação para este tipo de conclusões, como os próprios autores admitem, é que o estudo não foi desenhado com o objetivo de avaliar este espaçamento mais alargado da vacinação, antes aproveitou alguns percalços que aconteceram nos ensaios clínicos. Além disso, os intervalos de erro nas medições são muito grandes e sobrepõem-se, o que torna mais difícil chegar a uma conclusão fidedigna.

A Universidade de Oxford planeou, inicialmente, que os ensaios clínicos fossem feitos com uma única dose, mas os resultados da primeira fase mostraram que a toma de uma segunda dose conferia um aumento substancial do número de anticorpos. O plano foi alterado, mas nem todos os voluntários que aceitaram tomar a primeira dose, quiseram tomar a segunda. Adicionalmente, o atraso na produção das vacinas fez com que, em vários casos, houvesse também um atraso na toma da segunda dose.

A equipa ficou assim com dois grupos de pessoas que não podia incluir na análise principal dos ensaios clínicos — aquela que foi apresentada às agências reguladoras. Mas decidiu, com os dados que tinha, verificar se uma única dose fornecia imunidade e se o atraso da segunda toma tinha impacto na imunização dos voluntários.

A eficácia é baseada numa mistura de dados

Os investigadores da Universidade de Oxford e a AstraZeneca também anunciaram que injeção da primeira dose prevenia 100% das hospitalizações passados 22 dias ou mais. Mas, mais uma vez, este não era o objetivo do artigo.

E os autores admitem as limitações que têm na interpretação da eficácia com estes dados. Há poucos dados de seguimento destes voluntários depois da segunda dose, os que existem são sobretudo daqueles que tomaram a segunda dose dentro de um intervalo mais curto e, admitem os autores, foram misturados voluntários com características muito diferentes — não se sabendo sequer de que forma isso pode afetar os resultados.

“Os participantes que contribuíram para a análise da eficácia de uma única dose [número de internamentos quando comparados com o placebo] são uma mistura de participantes que tiveram uma ocorrência antes da segunda dose ou que não chegaram a tomar a segunda dose”, admitem os autores. Ou seja, dois grupos diferentes e dificilmente comparáveis.

A vacina foi aprovada na Europa, mas levanta questões

Matt Hancock, ministro de Estado da Saúde britânico, referiu que o estudo é “extremamente encorajador” e reforça ainda mais “a confiança de que as vacinas são capazes de reduzir a transmissão e proteger as pessoas desta doença terrível”.

Vacina da AstraZeneca aprovada pela Agência Europeia do Medicamento

No passado dia 29 de janeiro, a vacina da AstraZeneca teve luz verde da Agência Europeia do Medicamento (EMA) para ser administrada a todos os adultos nos Estados-membros da União Europeia — foi a terceira a ser autorizada na UE, depois das vacinas da Pfizer e da Moderna.

Na conferência de imprensa, a Agência Europeia do Medicamento esclareceu que a vacina da AstraZeneca pode ser administrada em pessoas com mais de 65 anos, mas reconheceu não ter “muita informação sobre a eficácia” acima dessa idade, uma vez que os ensaios clínicos da Universidade de Oxford e da AstraZeneca incluíram poucas pessoas mais velhas.

No dia anterior, um porta-voz da AstraZeneca defendia que as últimas análises apoiavam “a hipótese de uma eficácia da vacina no grupo de maiores de 65 anos”, reações que surgiram após a Alemanha ter considerado que a vacina só devia ser administrada em adultos até aos 65 anos, precisamente devido à escassez de dados sobre a eficácia acima dessa idade.

Artigo corrigido no dia 5 de fevereiro.
O Observador citou, inicialmente, os jornais internacionais sobre as conclusões do artigo, mas depois de uma análise do estudo alterou substancialmente esta notícia, clarificando as conclusões que não podiam ser tiradas (de redução da transmissão e de eficácia) e acrescentando as limitações do referido estudo.