Pela primeira vez, o conteúdo de uma carta selada do período renascentista foi revelado sem que o sobrescrito fosse aberto ou o selo quebrado. A missiva, escrita pelo mercador francês Jacques Sennacques de Lille para o seu primo Pierre Le Pers de Haia, foi lida por investigadores graças a uma técnica conhecida como “desdobramento virtual”, que recorre a raios-x de alta resolução para abrir um documento sem ter de o abrir de facto.

A carta de Jacques Sennacques, data de 31 de julho de 1697, faz parte de uma coleção de cerca de 2.600 missivas enviadas para Haia entre os anos de 1689 e 1706 e nunca entregues. Nos séculos XVII e XVIII, era costume os empregados dos correios guardarem as cartas não entregues em vez de as enviarem ao remetente, pois podiam valer alguma coisa se alguém fosse à procura delas, explica o The Guardian. O conjunto foi preservado pelos chefes dos correios da localidade nos Países Baixos, Simon de Brienne e Marie Germain, que o doaram a um museu local em 1926.

As cartas da coleção Brienne são um “testemunho das frágeis linhas de comunicação numa altura em que a Europa estava dividida pela guerra, pela crise económica e pelas diferenças religiosas”, consideraram os investigadores do grupo Unlocking History, composto por especialistas de universidades da Europa e Estados Unidos da América, responsável pela descoberta.

O século XVII foi marcado pela Guerra dos Trinta Anos. O conflito, que dominou grande parte da primeira metade do século XVII, teve o seu epicentro na região da atual Alemanha, embora tenha envolvido várias nações europeias, como os reinos da Suécia e França. Ainda que raramente recordada, a Guerra dos Trinta Anos, que começou por opor protestantes e católicos dentro do fragmentado Sacro Império Romano-Germânico, teve um impacto tremendo na paisagem europeia. Estima-se que tenha provocado a morte de mais de oito milhões de pessoas, o que a estabelece como um conflitos mais sangrentos da história da humanidade.

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A situação instável fazia com que as pessoas se movimentassem “com frequência, às vezes com pressa, sem deixar um endereço porque não tinham um ou não tinham liberdade para o divulgar”, consideram os investigadores, citados pelo The Guardian.

Sennacques queria uma cópia da certidão de óbito de um tal Daniel Le Pers

Mas o que descobriram os especialistas da carta enviada pelo mercador francês ao primo de Haia? Segundo o estudo publicado esta quinta-feira na revista científica Nature Comunications, onde se explica passo a passo como é que a missiva foi desdobrada virtualmente através da criação de uma imagem em 3D, Sennacques queria uma cópia da certidão de óbito de um tal Daniel Le Pers, indivíduo com o mesmo apelido que o seu familiar Pierre Le Pers.

“Passaram algumas semanas desde que te escrevi a pedir-te que me extraísses uma certidão da morte do senhor Daniel Le Pers, que ocorreu em Haia no mês de dezembro de 1695”, escreveu o mercador no dia 31 de julho de 1697. “Sem que tivesse recebido notícias tuas, escrevo-te uma segunda vez para te lembrar dos trabalhos em que me meti por tua causa. É importante para mim ter essa certidão e dar-me-ás grande prazer se a procurares por mim e me enviares notícias da tua saúde e de toda a tua família.”

A divulgação do conteúdo da carta de Sennacques representa um avanço importante no estudo de documentos históricos, uma vez que o tipo de papel e forma como foi dobrado constituem evidências importantes para historiadores e conservadores. Apesar do papel que o “desdobramento virtual” poderá vir a desempenhar no âmbito da coleção Brienne, a que esta missiva pertence, os investigadores do grupo Unlocking History acreditam que o seu impacto poderá ir muito mais além, já que existem muitas outras coleções com missivas por abrir.

Uma delas, lembram os especialistas, são os Prize Papers, que reúne cerca de 160 cartas nunca entregues aos respetivos destinatários. Os documentos, que pertencem ao Arquivo Nacional do Reino Unido, foram confiscados pelas autoridades britânicas a navios inimigos entre os séculos XVII e XIX.