A pandemia pode ter obrigado ao encerramento dos museus portugueses, mas não obrigou à suspensão das suas atividades. No caso do Museu Bordalo Pinheiro, em Lisboa, a programação tem continuado a ser realizada dentro do “novo normal”, com a organização de várias iniciativas online, como conversas, cursos e até oficinas, que pretendem manter o público perto, ainda que longe.

No âmbito desta atividade, o espaço museológico dedicado ao artista Rafael Bordalo Pinheiro lançou este mês de março uma nova coleção de pequenos livros, os Cadernos de Bordalo, sobre questões relacionadas com o artista, a sua obra e o seu tempo, e também com as circunstâncias em que o museu nasceu, fruto do esforço e dedicação do colecionador Artur Cruz Magalhães. O formato dos cadernos, disponíveis para compra desde o ano passado mas só agora apresentados publicamente, não é digital e talvez por isso a equipa do Museu Bordalo Pinheiro tenha ponderado se esta seria a melhor altura para os lançar.

“Fomos adiando o lançamento porque achávamos que íamos conseguir fazê-lo presencialmente. Decidimos que não íamos demorar mais tempo e que íamos criar também aqui um evento digital para levar o museu à casa das pessoas, para continuar essa ligação com as pessoas”, disse ao Observador o diretor, João Alpuim Botelho.

Nos dois primeiros Cadernos de Bordalo, aborda-se a ligação do artista com o fado e o trabalho do seu filho mais velho, Manuel Gustavo

Em capa mole e profusamente ilustrados, os Cadernos de Bordalo apresentam num “formato mais ligeiro” informações sobre o artista. Os dois primeiros dizem respeito a aspetos pouco conhecidos do grande público. O primeiro, Bordalo Não Gostava de Fadistas!…, da autoria de Pedro Félix, antropólogo e coordenador da equipa instaladora do Arquivo Nacional do Som, aborda a relação do ilustrador e ceramista com a canção nacional, que surge em várias dezenas dos seus desenhos, mas não de forma elogiosa. O segundo, Através do Traço. Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro (1867-1920), de Mariana Caldas de Almeida, historiadora e investigadora do Museu Bordalo Pinheiro, é dedicado ao filho mais velho de Bordalo e seu herdeiro artístico e empresarial.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Não são coisas muito aprofundadas. São coisas científicas, sempre, mas ligeiras e que despertam para os temas que Bordalo tratou”, apontou João Alpuim Botelho, descrevendo os livrinhos como “aperitivos”, que pretendem criar interessem em quem os lê pelos temas que abordam e talvez até dar origem a novas iniciativas. “Este [caderno] sobre o fado, Bordalo Não Gostava de Fadistas!…, já gerou a criação de uma página dentro do site do museu com todos os desenhos nos quais Bordalo representou fadistas e provavelmente vai evoluir para uma ligação com o Museu do Fado, talvez uma exposição”, revelou.

Bordalo Pinheiro não gostava de fadistas. Porquê?

A relação do artista com o fado era peculiar, mas não única, como explicou Pedro Félix. Rafael Bordalo Pinheiro, que nasceu na segunda metade do século XIX, assistiu à consolidação e estabilização das características musicais e interpretativas do género, que começava então a sair do circuito boémio e a chegar a outros públicos mais eruditos. Contudo, para Bordalo e a sua geração, o fado apresentava-se como o oposto daquilo em que acreditavam. Isso fez com que a sua relação com o fado não fosse a melhor, mas nem por isso o artista o deixou de representar nos seus trabalhos.

“Para estes jovens janotas, o fado era a sonorização daqueles que, sem plano nem projeto de alterar a sua condição, sem esperança e sem iniciativa, sem brilho nem estímulo, deixavam que o acaso lhes conduzisse a vida, resignados às contingências da sorte e da má-sina.” O fadista era, a seu ver, “uma pessoa apagada, dormente, perdida no no vago, (…) martirizada pelo abuso do álcool e do tabaco, recurvada sob o peso do próprio corpo. (…) A guitarra portuguesa, o cigarro e a navalha de tríplice calço eram os seus símbolos. As histórias de amores canalhas e destinos negros (…) eram o seu canto em excesso de sentimentos e pathos. O jogo, o pequeno crime, os furtos, a violência física, a convivência de bordel eram o seu modo de vida”.

Era esta a imagem que Bordalo, um “elegante jovem burguês urbano, empreendedor, fundador de publicações e de uma fábrica, frequentador da plateia do São Carlos”, e outros tinham de quem tocava e cantava o fado. E foi sempre assim que o artista os representou, utilizando-os como “recurso metafórico ou alegórico para transmitir uma opinião política (normalmente) depreciativa”. Para Bordalo Pinheiro, o fadista não tinha interesse em si, interessando sim enquanto meio para fazer passar uma determinada crítica social e política. Assim, entre os seus trabalhos, é possível encontrar figuras como o fadista-político ou o Zé Povinho-fadista, metáforas de tudo o que ia mal no país. “Tal como o fadista, o país vivia amolecido e dormente, dirigido por políticos de moral duvidosa e com dinheiro emprestado”, comentou o autor do primeiro Caderno de Bordalo.

O Museu Bordalo Pinheiro, em Lisboa, foi fundado por Artur Cruz Magalhães, grande admirador de Rafael. Uma fotografia do fundador decora uma das salas do espaço (FILIPE AMORIM/OBSERVADOR)

Apesar desta utilização da figura do fadista, os próprios fadistas também foram”instrumento de comentário político”. Estes surgem em desenhos avulsos nas publicações do artista. “São representados na rua, em tascas ou hortas. São representados a ‘bater o fado’. Quase sempre a tocar guitarra, o ‘fadista, também surge ilustrado em pose violenta de agressão iminente.” Esta pose alterou-se “um pouco” perto do final da vida de Bordalo Pinheiro, provavelmente devido à reconfiguração definitiva do fado no espaço público, para a qual contribuiu de forma definitiva a peça A Severa (1901), de Júlio Dantas, que serviu de tema a várias caricaturas do artista.

Pedro Félix considera que A Severa de Júlio Dantas é o culminar de uma época em que o fado se tornou “moda”. “O rei tinha aulas de guitarra portuguesa com João Maria dos Anjos, os que não sabiam tocar guitarra tocavam fados ao piano, escritores celebrados produziam letras para fados (Bulhão Pato, Afonso Lopes Vieira), compositores assumiam a autoria de fados (Hussla, Marques Pinto, Rey Colaço).” A própria música também se tornou mais elaborada, necessitando de uma execução musical mais exigente.

No início do século XX, a popularidade do género musical era tal que Bordalo, que o tinha usado como elemento nos seus ataques políticos, chegou a publicar fados e letras para fados nalgumas das suas publicações, sobretudo em A Paródia. Como refere o antropólogo e coordenador da equipa instaladora do Arquivo Nacional do Som, Rafael Bordalo Pinheiro podia não gostar de fadistas (e não gostava mesmo), “mas estes foram-lhe muito úteis ao longo da sua carreira…”.

Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro: artista e herdeiro de seu pai

A coleção visa também colmatar uma falha do museu. Até muito recentemente, não havia o hábito de documentar as exposições e trabalhos feitos, que podem agora ser recuperados em formato de caderno. É esse o caso de Através do Traço, baseado no trabalho de investigação feito por Mariana Caldas de Almeida para uma mostra sobre Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro realizada em 2013. Esta exposição não “tinha catálogo e não há praticamente bibliografia sobre ele. Era um ilustre desconhecido, a não ser para os especialistas”.

O primogénito de Bordalo foi também o tema da última exposição temporária inaugurada no espaço museológico, Histórias Desenhadas, em setembro do ano passado. Composta por 29 peças, esta apresentava cronologicamente “os pontos fundamentais da obra do artista, numa perspetiva muito específica, a da obra desenhada, mas que nos permite perceber perfeitamente a evolução e a originalidade de Manuel Gustavo e a forma como ele se despegou do pai”, explicou na altura Mariana Caldas de Almeida ao Observador.

O caderno Através do Tempo também apresenta esta faceta da obra de Manuel Gustavo, mas numa perspetiva muito mais ampla, que percorre as várias áreas artísticas a que se dedicou, como a ilustração ao a cerâmica. O artista que foi sempre uma presenta constante na Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, que o pai inaugurou em 1884, dedicou-se com grande interesse à cerâmica após a morte de Rafael Bordalo Pinheiro, em 1905, desenvolvendo um estilo próprio que conjugava a matriz tradicional caldense com elementos da arte moderna, nomeadamente da Arte Nova. Os seus trabalhos em cerâmica, assim como outros que produziu, permanecem ainda hoje pouco conhecidos, mas não deixam de ter importância.

O museu inaugurou em setembro do ano passado uma exposição temporária dedicada a Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, Histórias Desenhadas, com curadoria de Mariana Caldas de Almeida (ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR)

Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, que se tornou responsável pela empresa após 1905, foi o fundador da Fábrica Bordallo Pinheiro, ainda em funcionamento, criada após o fim da primeira devido a vários problemas financeiros. Foi também indispensável na abertura do Museu Bordalo Pinheiro, um projeto do amigo Cruz de Magalhães, em 1916. Tal como as exposições de 2013 e 2020, Através do Tempo afasta Manuel Gustavo da figura gigantesca do seu pai, cuja enorme sombra sempre o obscureceu, mostrando o seu valor enquanto artista e a razão pela qual merece também ser recordado.

“Manuel Gustavo teve de facto muita importância por ter continuado a obra de Bordalo e por ter tratado [enquanto artista] temas como o sport, como se dizia na altura, que começa a ser muito importante. Foi também um dos pioneiros da ilustração infantil, com O Gafanhoto [uma das primeiras revistas portuguesas de banda desenhada para crianças]. É importante estar cá fora essa informação e dentro dessa lógica de aperitivo, de lançar sementes. Pode ser que alguém nos bata à porta”, defendeu João Alpuim Botelho.

E em setembro, sai um “manguito”

A ideia é dar continuidade ao projeto, apresentando novos cadernos com novos temas e novas informações. O próximo, o número três, com data de publicação agendada para setembro, já está escolhido: será “dedicado a um tema fundamental na obra de Bordalo e se calhar fundamental no nosso dia a dia, o ‘manguito’”, disse o diretor. A imagem do Zé Povinho a fazer um “manguito” é uma das mais irónicas do artista e, por isso, o Museu Bordalo Pinheiro pediu “a uma linguista especialista em gestos, Isabel Galhano, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, para fazer um trabalho sobre o que significa este ‘manguito’”, um gesto “rude”, “obsceno”, mas que é também “uma forma de reação quando as coisas não estão bem”. É “uma filosofia de rejeitar aquilo que não está bem, (…) mas consciente e construtiva. Achamos que o manguito é importante”.

A apresentação do segundo caderno, Através do Tempo, acontece na próxima semana, no dia 12 de março, sexta-feira, às 18h, através do Facebook do museu. A de Bordalo Não Gostava de Fadistas!… já decorreu, mas pode ser revista na mesma rede social, aqui.