Qualquer competição gera conflitos e dramas, mas há qualquer coisa de inesperado em ver esses elementos transformados numa narrativa de entretenimento. Sobretudo quando esses mesmos elementos são reais e servem de punchline perfeita para um episódio. Mesmo que isso implique alterar a simpatia que se tem por uma personagem — que neste caso é um piloto. Amamos e odeamos pilotos durante os episódios da série “F1: Drive To Survive”. Alguns reconquistam a simpatia, outros estão para sempre enfiados num canto. Há uma perceção clara de que alguns devem ser pessoas insuportáveis, de que há situações que rebentam com os nervos de qualquer um. Apesar disso, os índices de calvície na Fórmula 1 são muito reduzidos.
“F1: Drive To Survive” é uma telenovela. Ou um ótimo programa de entretenimento de desporto. A Fórmula 1 é o tema de conversa, contudo a barreira é rapidamente quebrada com a narrativa que se constrói à volta do tema. Há pilotos (como Max Verstappen) que acusam a série de sensacionalismo e de ser pouco verdadeira. É possível, mas vive-se bem sem a verdade que “F1: Drive To Survive” nos mostra, porque o que importa é a intriga.
A colaboração entre a Netflix e a Fórmula 1 teve início em 2018. A ideia é que cada temporada da série cubra uma temporada da modalidade: em 2019 estreou-se a campanha de 2018, em 2020 a de 2019 e a que chega à Netflix esta sexta-feira, dia 19 de março, diz respeito a 2020, um ano atípico para o mundo e em particular para a Fórmula 1. A época foi adiada devido à pandemia e aconteceu em circunstâncias muito específicas, sem visitas ao continente americano e com poucas corridas fora da Europa. Até passou por Portugal (e este ano e nos próximos também passará). E, devido às limitações, alguns países tiveram direito a mais do que um Grand Prix, como foi o caso de Reino Unido, Itália e Bahrain. E também houve pouco ou nenhum público nas bancadas.
[o trailer da treceira temporada de “Drive to Survive”:]
A temporada de Fórmula 1 começou quando as coisas estavam mais calmas, depois da primeira vaga da pandemia (teve início em julho). Era um pouco de competição fresca que nos era apresentada, na ausência daquilo que se estava à espera de poder ver no verão (como o Europeu de futebol ou os Jogos Olímpicos) e a ausência – total ou parcial – de público no desporto motorizado era como que um reflexo algo bizarro das nossas vidas: era fácil de aceitar que o público não estava lá, ao contrário de outros desportos.
Foi também a temporada em que Lewis Hamilton quebrou mais uns quantos recordes (pelo menos um em cada etapa da temporada) e igualou o número de títulos de Michael Schumacher (sete). E, claro, da surpresa da Racing Point, da desilusão da Ferrari, dos meltdowns de Sebastian Vettel e da despedida de Romain Grosjean, que aconteceu de forma quase mortal. Felizmente, terminou tudo bem. Exceto para a Haas, equipa que, desde que a série começou a ser filmada, continua em modo descendente (e, claro, a promover mais entretenimento para os espectadores).
Um ano cheio de temas para criar intrigas ainda maiores em “Drive To Survive”. A Netflix criou um programa que é um excelente balanço entre acesso a bastidores, histórias pessoais (dos pilotos, mas também de figuras principais das equipas) e os grandes prémios. E sabe gerir esses dados de forma a criar uma relação com o espectador. Este pode não perceber nada do que se passa ali, isto em relação a aspectos mais técnicos e específicos da Fórmula 1, mas facilmente agarra-se a pilotos ou figuras em sua volta que depressa se tornam personagens sobre as quais se quer seguir o enredo.
Em poucas palavras: todos gostamos de uma boa história, que é o que se vê em “Drive to Survive”. Isso e imagens impressionantes das corridas, dos duelos entre as máquinas, dos despistes e das paragens na boxe. Além disso, foi a melhor campanha de marketing que a Fórmula 1 poderia ter tido, responsável pela reconquista de alguns fãs perdidos e pela sedução junto de muitos que nunca tinham pensado em seguir um grande prémio.
Um dos exemplos mais marcantes é o do piloto australiano Daniel Ricciardo. Se na primeira temporada se assiste à sua longa novela de rutura com a Red Bull, a segunda temporada é uma delícia sobre um primeiro ano péssimo na Renault. O que esperar desta terceira temporada de “Drive To Survive” em que Daniel Ricciardo assinou com a McLaren para 2021, pouco antes da época de 2020 começar? Ou da venda da Williams Renault a meio da temporada, terminando o legado da família Williams na Fórmula 1, depois dos anos de má gestão de Claire Williams (tão bem acompanhados pela série da Netflix, um subplot cheio de intrigas, também). Drama.
Bastidores, má língua, traições e erro humano. Só não há é sexo em “Drive To Survive”. E quando se entra no quarto de hotel dos pilotos, normalmente é para vê-los a jogar Playstation, coisa que fazem regularmente para simular a vida real. Ou entrar em competições virtuais para compensar a tensão das pistas. Este é também um momento fascinante da Fórmula 1, em que há muito sangue novo – e entusiasmante – a entrar e que está a criar um bom despique com a velha guarda. Os pilotos, hoje em dia, entram para a Fórmula 1 muito novos e têm tendência a cometer mais riscos – e erros – do que os mais velhos. A forma como as equipas funcionam – e trabalham e fazem prospeção do seu talento – é algo que vai surgindo nas entrelinhas na série, graças ao acesso aos bastidores. É uma forma muito subtil de falar da mudança que se está a manifestar na modalidade e que com o tempo é provável que se revele como um bom documento sobre o que está a acontecer nestes anos.