Na Índia, o pesadelo da pandemia está longe de ter terminado. O país, um dos mais afetados pelo novo coronavírus, continua a registar diariamente novos máximos de mortes e de casos de Covid-19, piorando uma situação que é cada vez mais complicada. Os números são impressionantes — só nas últimas 24 horas, foram confirmadas 2.624 vítimas mortais relacionadas com o vírus, um novo máximo diário que elevou o total de óbitos registados oficialmente para cerca de 190 mil. O número de casos é 16,5 milhões desde o início da pandemia, após terem sido identificados mais 340 mil.

Hospitais e profissionais de saúde estão para lá do limite. Ao cenário catastrófico veio juntar-se recentemente uma escassez de medicamentos e de oxigénio. Na capital Nova Deli, a rotura nos stocks e a falta de camas levou a que muitos doentes acabassem por morrer em frente aos hospitais. Os crematórios estão sobrecarregados e trabalham 24 horas por dia. O elevado número de mortes levou a que uma instituição de caridade em Nova Deli montasse um crematório improvisado num parque de estacionamento. Relatos semelhantes repetem-se um pouco por todo o país.

Os especialistas estão preocupados — as previsões apontam que o pico desta nova vaga só deverá ser atingido daqui a três semanas — e apontam o dedo às autoridades, que se deixaram enganar por uma falsa sensação de segurança. Se tivessem sido implementadas medidas a tempo de receber a segunda vaga, talvez a catástrofe tivesse sido evitada. Com a situação já estabelecida, os governos estatais vão tentando suprimir as dificuldades, anunciando a construção de instalações para doentes com Covid-19 e a chegada de novas remessas de oxigénio. Mas os relatos das filas intermináveis nos hospitais e dos corpos que não param a chegar aos crematórios parecem indicar que estas medidas podem não ser suficientes, sobretudo se se confirmar as estimativas que dão conta de uma realidade muito pior do que a que revelam os números oficiais.

India Struggles To Contain Huge Wave Of Covid-19 Infections

Anindito Mukherjee/Getty Images

Os primeiros sinais surgiram em fevereiro — mas todos os ignoraram

A situação na Índia começou a piorar no início de fevereiro, quando teve início a segunda vaga de Covid-19. Por essa altura, eram confirmados em média cerca de 11 mil casos por dia. No mês e meio seguinte, esse número duplicou, crescendo de forma exponencial nos dez dias que se seguiram — no final do mês de março, a média estava cada vez mais próxima dos 90 mil. As razões para este aumento súbito continuam a ser discutidas — especialistas apontam a realização de grandes festivais religiosos, como a celebração do feriado hindu Khumb Mela, a reabertura da maioria dos locais públicos ou a nova variante do coronavírus, potencialmente mais contagiosa e letal, como tendo contribuído para o estado calamitoso em que o país atualmente se encontra. Uma coisa, porém, é certa — esta vaga de Covid-19 está a espalhar-se muito mais rapidamente do que a anterior.

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Para A. Fathahudeen a situação não é totalmente surpreendente. O médico que integra a taskforce do estado de Kerala, no sul da Índia, alertou em fevereiro para a necessidade de tomar medidas urgentes para evitar um desastre, mas as restrições acabaram por ser aliviadas. “Uma falsa sensação de normalidade apoderou-se de toda a gente, de pessoas e oficiais”, disse à BBC, defendendo que “não foram tomadas medidas para parar a segunda vaga”. De acordo com Fathahudeen, os sinais eram já visíveis em fevereiro, “mas nós não nos organizámos”. “Disse em fevereiro que a Covid não tinha ido a lado nenhum e que um tsunami iria atingir-nos se não tomássemos ações urgentes. Infelizmente, um tsunami atingiu-nos de facto agora.”

India Struggles To Contain Huge Wave Of Covid-19 Infections

Anindito Mukherjee/Getty Images

À falta de prevenção veio juntar-se uma pouco eficaz campanha de vacinação. Tal como muitos outros países, a Índia iniciou o processo no início de janeiro, começando pelos profissionais de saúde. De acordo com o The New York Times, no primeiro dia, foram imunizadas 165 mil pessoas contra a Covid-19. A ideia era que vários milhões de médicos, enfermeiros e outros profissionais fossem vacinados até à primavera mas, passados quase quatro meses desde o início da campanha, apenas 10% da população se encontra vacinada com pelo menos uma dose, apesar de a Índia ser o principal produtor de vacinas no mundo.

Camas escasseiam nos hospitais. Construção de instalações pode não conseguir acompanhar aumento de casos nas próximas semanas

O aumento de casos tem levado a um inevitável aumento do número de internamentos, o que está a provocar uma falta de camas nos hospitais. As cidades indianas mais afetadas, Nova Deli, Bombaim e Ahmedabad, estão quase sem lugar para os doentes com Covid-19, uma realidade que não é muito diferente noutras localidades, como Lucknow, Bhopal ou Kolkata. A situação é ainda mais complicada se falarmos apenas em unidades de cuidados intensivos (UCI) — de acordo com a BBC, em certas cidades, existem apenas algumas dezenas de camas disponíveis nestas unidades.

Em Pune, no estado de Maharashtra, o número de doentes é tão elevado que um hospital para pessoas com Covid-19 teve de colocar doentes em ambulâncias até os conseguirem transferir para os cuidados intensivos. Alguns chegaram a estar 12 horas nestes veículos até que uma cama em UCI ficasse vaga. Quando os ventiladores começaram a escassear, o responsável pelo hospital, Siddheshwar Shinde, teve de transferir doentes para outras localidades. Uma situação que nunca tinha acontecido, uma vez que é para Pune que muitos são levados.

Vários governos estatais anunciaram a criação de instalações para receberem os doentes, mas os especialistas acreditam que será muito difícil acompanhar o ritmo crescimento das infeções que, na semana de 12 de abril, aumentavam a um ritmo médio de 150 mil por dia. Este número é agora maior — cerca de 300 mil —, após terem sido atingidos vários novos máximos ao longo desta semana. O último foi na sexta-feira, quando foram confirmados 332.730 novos casos. Mas as camas em si não são suficientes, como apontou A. Fathahudeen: “Precisamos assegurar que a maioria destas camas tem oxigénio. Precisamos de mais médicos e enfermeiros para atenderem as camas extras em UCI”, disse.

Delhi Hospitals Under Stress Amid Rising Covid Cases

Sonu Mehta/Hindustan Times via Getty Images

Na opinião de Anant Bhan, um especialista em saúde pública ouvido pela BBC, o período mais calmo da pandemia devia ter sido usado pelas autoridades para antecipar a nova vaga, nomeadamente com a construção de novas instalações. Mas não foi isso que foi feito. “Não aprendemos nada com a primeira vaga”, considerou Bhan. “Tínhamos relatos de que algumas cidades estavam a ficar sem camas na primeira vaga e isso devia ter sido razão suficiente para nos prepararmos para a segunda.” O especialista acredita existir uma falta de coordenação entre os governos estatais e federais relativamente à distribuição de medicamentos e oxigénio, uma das questões mais urgentes. “Precisamos de consolidar uma resposta e os recursos devem ser partilhado entre os estados”, defendeu.

Comboios levam oxigénio a quem mais precisa. Num hospital em Nova Deli, 25 pessoas morreram

A par da escassez de camas, os hospitais têm ainda reportado níveis perigosamente baixos de oxigénio. Segundo os dados fornecidos à BBC pelo Ministério da Saúde indiano, os estabelecimentos de saúde consomem, em norma, 15% do oxigénio disponível a nível nacional, sendo o restante distribuído para uso industrial. Atualmente, 90% do oxigénio, que corresponde a 7.500 toneladas métricas por dia, está a ser desviado para os hospitais, um número que é três vezes superior ao registado durante a primeira vaga, em meados de setembro do ano passado.

A situação levou a que um hospital de Nova Deli pedisse a intervenção do Tribunal Superior que, na quarta-feira, decidiu que o governo devia desviar o oxigénio do uso industrial para os hospitais. A decisão impediu a morte de 60 pessoas em perigo de vida no hospital Sir Ganga Ram, em Nova Deli, mas não chegou a tempo de salvar as 25 que morreram até quinta-feira no mesmo estabelecimento de saúde por falta de oxigénio.

Pressionado pelas críticas, o governo central organizou o transporte de oxigénio em comboios especiais para as cidades mais afetadas, como Lucknow. A localidade no estado de Uttar Pradesh, no norte do país, recebeu durante a madrugada deste sábado uma locomotiva com 30 mil litros. Os hospitais tinham já declarado o “fim do stock de oxigénio” e pedido para que os doentes fossem levados para outra região. A Força Aérea indiana foi recrutada para ajudar a levar oxigénio às zonas mais necessitadas. Existem também planos para importar 50 mil toneladas métricas de oxigénio líquido, refere a BBC.

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O número de mortes pode ser muito maior do que se pensa. Crematórios trabalham 24 horas por dia

A Índia voltou a atingir um novo máximo de óbitos este sábado, ultrapassando as 2.624 mortes registados na sexta-feira. Os dados oficiais apontam para cerca de 190 mil vítimas mortais desde o início da pandemia, mas os especialistas acreditam que os números reais possam ser bem maiores, com base na realidade vivida nos crematórios, onde os fogos nunca param de arder e os mortos nunca param de chegar. É esta a situação em Ahmedabad, no estado de Gurajad — Suresh Bhai, que trabalha num crematório local, admitiu ao The New York Times que nunca teve tanto trabalho. A causa será a Covid-19, mas a verdade é que muitas famílias optam por esconder as causas da morte, assinalando apenas “doença”.

Os analistas ouvidos pelo jornal norte-americano acreditam que esta poderá ser uma das razões pelas quais os números reais muito provavelmente não batem certo com os dados recolhidos pelo governo — muitas famílias podem estar a esconder que foi a Covid-19 que provocou a morte dos seus familiares, uma situação que só é possível porque muitos doentes optam por não procurar ajuda médica.

Samirul Islam, presidente da Bangla Sanskriti Mancha, uma organização social que trabalha em zonas rurais alertando para os perigos do coronavírus, disse ao The Guardian que “um número elevado de pessoas com doenças como a Covid estão em casa sem sequer serem testadas para o vírus”. “Apenas os doentes com muita falta de ar são levados para os hospitais. Uma grande parte da população infetada permanece por detetar”, explicou.

Covid Death Toll Continues To Rise In India

Amal KS/Hindustan Times via Getty Images

Nos próprios hospitais, os números podem também estar a ser mal registados. G. C. Gautam, cardiologista em Bhopal, no centro da Índia, considerou que “há muitas mortes que não estão a ser registadas e estas estão a aumentar todos os dias”. Na opinião do médico, a culpa é das autoridades, que querem manter os números por baixo para não gerar “pânico”. De acordo com o The New York Times, o mesmo estará a acontecer nas duas maiores cidades do estado de Uttar Pradesh, Lucknow e Mizapur, e também em Gurajat.

Tudo isto leva a crer que a realidade é muito pior do que aquela que os números indicam. Em declarações ao The New York Times, Bhramar Mukherjee, epidemiologista na Universidade de Michigan, pintou um quadro negro: segundo o especialista, as estimativas atuais apontam para que o número real de mortes seja entre duas a cinco vezes superior ao reportado. Se estiverem corretas, isto significa que, na Índia, a epidemia do novo coronavírus provocou a morte de pelo menos 380 mil pessoas. Um número que continuará a aumentar nas semanas que estão por vir.