Há alguns meses celebrámos os trinta anos da estreia de “O Silêncio Dos Inocentes”. Até então, a carreira de Anthony Hopkins era essencialmente marcada por muitos trabalhos para televisão. O filme de Jonathan Demme, adaptando o romance de Thomas Harris, iria para sempre imortalizá-lo. É injusto reduzir um ator a um papel – sobretudo Anthony Hopkins – mas Hannibal Lecter mudou para sempre o cinema e a forma como um assassino em série é percecionado e tratado, no grande e no pequeno ecrã. É injusto reduzir um ator a um papel, dizíamos, sobretudo quando esse ator é o mesmo que protagoniza “O Pai”, que se estreia em Portugal a 6 de maio.

Não é que estes dois filmes, que balizam a distância que vai do primeiro ao segundo Óscar de Melhor Actor – Hopkins foi nomeado seis vezes até ao momento, nas categorias de Ator Principal e Secundário –, representem tudo o que é preciso conhecer do percurso de Hopkins. Mas há qualquer coisa de simbólico aqui. Se o ator britânico entrou na nossa memória por um papel inesquecível (Hannibal Lecter), aos 83 anos conquista a sua segunda estatueta (a pessoa mais velha de sempre a vencer um Óscar) num papel sobre o esquecimento, interpretando uma personagem que sofre de demência e que existe – para o espectador – num loop temporal, labiríntico, que só convence o espectador dessa realidade – a da demência –, graças a uma interpretação que fecha quem vê o filme na sua mente.

Essa é uma das grandes vitórias de “O Pai”, o filme de Florian Zeller que arrecadou dois Óscares nesta noite (o outro for para Melhor Argumento Adaptado). Zeller criou “O Pai” para teatro, inspirado por experiências pelas quais passou. Conta a história de um homem que lida com o seu legado familiar ao mesmo tempo que batalha contra a degradação mental que o vai conquistando. A peça, estreada em 2012, foi um sucesso em França e rapidamente no mundo. Já tinha sido anteriormente adaptada ao cinema – em 2015, por Philippe Le Guay, com o título “Floride” –, mas a versão de Zeller, na sua estreia cinematográfica, segue à risca os retalhos da memória que fizeram da peça de teatro um sucesso.

[o trailer de “O Pai”:]

Zeller encontrou em Hopkins o ator perfeito para o papel. E não se cansou de admiti-lo no discurso de aceitação do Óscar para Melhor Argumento Adaptado. Hopkins é um dos grandes atores da sua geração: e um dos primeiros a dizê-lo foi Richard Attenborough, que o dirigiu em cinco filmes, entre os quais “Young Winston” (1972) e “A Bridge Too Far” (1977). Em 1980, teve um dos papéis mais assinaláveis da sua carreira – antes e pós-“O Silêncio dos Inocentes” –, o Dr. Frederick Treves de “O Homem Elefante”, de David Lynch.

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A natureza de “O Pai” – que nasce de uma peça de teatro, com poucos atores –, permite a Hopkins explorar muitas das virtudes que transformou em coisa própria ao longo de décadas. Se, por um lado, o caminho que fez no teatro (com muito peso na sua carreira nas décadas de 1960 e 1980) permite-lhe dominar as cenas e a câmara como se estivesse num palco (deixando, muitas vezes, a sua filha, interpretada por Olivia Colman, impotente), por outro, há um sentido de grandiosidade, de alguém que nunca mostrou grandes receios em arriscar, que lhe permite manipular tudo e todos, colocar o mundo à sua mercê.

O Anthony Hopkins que vence o Óscar de Melhor Ator por “O Pai” é um Hopkins que, com mais de oitenta anos, não tem medo de arriscar e de se expor num papel que o deixa vulnerável. Mas é também o mesmo ator que poderia estar descansado e não entrar em produções exigentes, como filmes do Universo Cinematográfico da Marvel, onde interpreta Odin, o pai de Thor.

O mesmo ator que não temeu presentar figuras pesadas da história recente, como Richard Nixon, em “Nixon” (1995), de Oliver Stone; Pablo Picasso em “Sobreviver a Picasso (1996), de James Ivory; “Hitchcock” (2012), de Sacha Gervasi; ou o Papa Ratzinger, em “Os Dois Papas” (2019), de Fernando Meirelles. Sem esquecer que voltou a Hannibal Lecter por duas vezes, em “Hannibal” (2001), de Ridley Scott, e “O Dragão Vermelho” (2002), de Brett Ratner, provavelmente sabendo que não atingiria o cume como em “O Silêncio dos Inocentes”. Mas mesmo isso não o impediu de tentar.

Talvez esse ímpeto de voltar a arriscar, consecutivamente, seja o que o leva a interpretar papéis como este em “O Pai”. Tentar o Óscar – que conseguiu –, mas também tentar apropriar-se de uma personagem que fique novamente no imaginário do público. E é quase certo que conseguiria isso mesmo se não tivesse vencido o Óscar: e que a estatueta facilite que não o esqueçamos. “O Pai” não vai colocar Hannibal Lecter numa gaveta fechada, reforça a importância de nos lembrarmos de Anthony Hopkins, um ator com papéis que não caem no esquecimento.