O Governo diz querer garantir que os bancos veem a sua posição reforçada face aos empreiteiros na hora de receber o crédito de promotores imobiliários que entram em insolvência. Numa nota conjunta enviada ao Observador depois do pedido de esclarecimento, os ministérios da Justiça e da Economia asseguram que não há intenção de alterar a posição do comprador da casa — ao contrário do que o Observador tinha noticiado com base na interpretação de especialistas. E afirmam mesmo que essa questão “está bem solucionada pela lei há muito tempo”.

“Não há intenção de alterar a regra do código civil segundo a qual o direito do promitente comprador de imóvel ao qual tenha sido entregue o imóvel antes da escritura prevalece sobre a hipoteca a favor do banco”, afirmam os dois ministérios.

Por outras palavras, o Governo diz não ter intenção de alterar a lei sobre a questão que mais polémica tem levantado neste capítulo — quando uma família assina um contrato-promessa, paga o sinal e começa a viver na casa que está a comprar (mas que ainda não lhe pertence), o que é que acontece se entretanto a dona da obra entrar em processo de insolvência? É o comprador da casa que tem direito a indemnização (o valor do sinal pago a dobrar)? Ou o banco que emprestou dinheiro para a construção da casa tem primazia?

A questão só ficou estabilizada depois de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2014, que garantiu que as famílias ficam na linha da frente — têm mesmo direito à respetiva indemnização antes de o banco credor da construção receber a sua parte.

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Só que o Governo esclarece agora que não é isso que está em causa, mas sim o “direito do empreiteiro perante o qual o promotor imobiliário tenha dívidas”, algo que “não está previsto expressamente na lei, mas que nos últimos anos tem vindo a suceder na prática e por via de decisões judiciais”, acrescenta a nota do Governo. “Tem sido invocado pelo empreiteiro o direito de retenção pelo imóvel, que prevaleceria sobre a hipoteca registada anteriormente”, afirmam os dois ministérios.

O Governo quer, por isso, “esclarecer por via legislativa, para dar segurança a todas as partes, o que prevalece entre estas duas posições: a do empreiteiro ou a do credor hipotecário”.

A questão surge depois de o Governo ter inscrito no Plano de Recuperação e Resiliência, entregue em Bruxelas, a intenção de “reforço da posição do credor hipotecário (mortgage lender/creditor)” — ou seja, dos bancos que emprestaram dinheiro para a construção —, através da “revisão do regime de preferência do direito de retenção no confronto com a hipoteca”. Algo que foi interpretado por especialistas em insolvências e direito dos consumidores como uma intenção de dar primazia à banca sobre as famílias, como referido acima.

Antes da publicação da notícia, na noite de quarta-feira, o Observador tentou à tarde obter esclarecimentos sobre esta questão junto do gabinete de comunicação do Ministério de Justiça, mas não obteve qualquer resposta. A reação conjunta dos ministérios da Justiça e da Economia surgiu esta quinta-feira, cerca de um dia depois do pedido de esclarecimento.

PRR. Governo quer reforçar direitos da banca quando dona de obra entra em insolvência

“Decisão estranha”, com risco de discriminação

Confrontado inicialmente com esta frase no PRR — que não tem qualquer referência ao comprador ou a qualquer outro agente nesse “confronto” com a banca —, o diretor da Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação, Paulo Valério, disse não ter dúvidas de que, “ao contrário do que acontece agora, em que há uma proteção das famílias”, seriam as instituições financeiras a receber proteção. Em conversa com o Observador, o advogado afirmou que seria necessário “ter algum cuidado quando se mudam as regras do jogo” e que o Governo propunha “reabrir a ferida para fazer favor aos bancos”, que “estavam revoltados” com as constantes decisões contrárias neste tipo de casos.

Agora, perante a resposta do Governo de que pretende afinal alterar a posição do empreiteiro, o advogado diz ser uma “decisão estranha”. Por um lado, “simplesmente retirar o direito de retenção aos empreiteiros” é “juridicamente insustentável e incongruente com o que diz o PRR, que fala, clara e genericamente, em rever a preferência do direito de retenção em confronto com a hipoteca”. Por outro lado, a alternativa seria “criar uma espécie de direito de retenção de segunda para os empreiteiros, que passaria, então, a não prevalecer face à hipoteca”, o que também não lhe parece correto.

Sandra Passinhas, professora de Direito da Faculdade de Coimbra que também leu inicialmente aquela referência no PRR como uma intenção de alterar a relação de forças entre a banca e o consumidor, concorda com Paulo Valério, embora acredite que o legislador, quando redigir o texto, “não se referirá em especial aos empreiteiros, sob pena de discriminação inaceitável”.

Neste momento, explica ainda a jurista, “a lei não prevê expressamente que o empreiteiro tenha direito de retenção relativamente ao dono da obra (o promotor imobiliário), mas a jurisprudência tem aceitado pacificamente que esse direito existe”.

E é por isso que Paulo Valério diz não perceber a necessidade da mudança. O advogado dá como exemplo um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa sobre esta matéria, em 2018, que mostra como a questão tem sido muito pacífica entre os tribunais.

“Reconhece-se hoje, sem oposição relevante, que o empreiteiro goza do direito de retenção sobre a obra em construção ou já construída, quer para garantia das despesas efectuadas na coisa quer ainda para garantia do próprio preço”, escreveu o tribunal, acrescentando que “o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta esteja registada anteriormente”.

E porquê essa preferência a favor do empreiteiro? “Justifica-se não apenas porque o seu direito de crédito deriva da celebração de um contrato, mas porque se verifica que a sua actividade sobre a coisa produziu nela uma melhoria objectiva, uma mais valia, no sentido do aumento do seu valor, da sua conservação, ou ainda do impedimento da diminuição do seu valor”, explicou então o tribunal.