A Human Rights Watch tem recebido centenas de pedidos de ajuda por parte de pessoas que querem deixar o Afeganistão o mais depressa possível desde que os talibãs tomaram o poder, revela em entrevista ao Observador a responsável pela Divisão dos Direitos das Mulheres. Heather Barr fala num “fluxo constante de pedidos de ajuda”.

A trabalhadora humanitária explica que a organização está neste momento a fazer “os possíveis” para reencaminhar estes pedidos para “países e organizações que possam retirar as pessoas do Afeganistão”. Heather Barr descreve mesmo um cenário de “desespero”.

Há muitas pessoas escondidas e cheias de medo. Mudam de esconderijo frequentemente porque têm medo de serem encontradas. E estão à espera, na esperança de que surja uma forma de sair do Afeganistão. Neste momento, é muito difícil e perigoso. É bastante óbvio que as pessoas estão desesperadas e à procura de alguém que as possa ajudar. É uma verdadeira crise”, afirma a codiretora interina da Divisão dos Direitos das Mulheres da Human Rights Watch ao Observador.

E a situação é grave principalmente para mulheres. Os talibãs já vieram a público garantir que vão respeitar os direitos de todos os cidadãos afegãos, incluindo mulheres. “Vamos respeitar os direitos das mulheres”, disse no domingo um porta-voz do movimento fundamentalista. “A nossa política é a de que as mulheres terão acesso à educação e ao trabalho”, acrescentou. Mas sempre em respeito pela sharia, a lei islâmica.

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Apesar das garantias dadas pelos rebeldes, Heather Barr tem muitas dúvidas.

Dizer que os direitos das mulheres e raparigas afegãs estão em risco é pouco. Isto é um pesadelo tornado realidade para todas. Elas sentem que tudo pelo qual lutaram, conquistaram e alcançaram nos últimos 20 anos desapareceu do dia para a noite. E acho que é particularmente devastador para as jovens que cresceram nos últimos 20 anos e pensavam que a era dos talibãs era uma época negra no passado, pela qual só as mães e avós delas passaram e que elas não iriam ter de enfrentar. E, agora, parece que esse passado se tornou presente para elas também”, lamenta Heather Barr.

De facto, para muitos afegãos, e sobretudo para as mulheres, o que está a acontecer é um retrocesso de duas décadas no que toca a direitos fundamentais. Os talibãs já prometeram um regime “aberto e inclusivo”. Mas certo é que há já vários relatos de violações dos direitos.

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Logo no primeiro dia do regime talibã, a maioria das mulheres pivôs já não apareceu nas emissões dos canais televisivos afegãos e as rádios praticamente não passaram música. Esta quarta-feira, uma pivô da televisão estatal afegã foi impedida de trabalhar. O caso foi denunciado nas redes sociais.

Jornalista de TV afegã diz ter sido impedida de trabalhar por talibãs e pede ajuda num vídeo

Questionada sobre esta situação, a codiretora interina da Divisão dos Direitos das Mulheres da Human Rights Watch não tem dúvidas: “É um sinal do que aí vem para as mulheres no Afeganistão”.

Este caso surge 24 horas depois de os talibãs derem uma conferência de imprensa na qual tentaram convencer o mundo de que são profissionais, legítimos e que devem ser vistos como um governo válido para o Afeganistão e serem recebidos pela comunidade internacional. Mas nem um dia conseguiram passar sem violar de forma clara os direitos das mulheres. Acho que este caso ilustra o que as mulheres afegãs já sabiam: que não se pode confiar nos talibãs, com base no que dizem”, alerta Heather Barr.

A ativista dos direitos humanos vai mesmo mais longe: “Não há sinal de que os insurgentes estejam sequer perto de respeitar os direitos básicos das mulheres”.

Para Heather Barr, o problema está na forma como o movimento fundamentalista interpreta a lei. “É uma interpretação muito fora do comum, muito extrema e muita estranha comparada com a dos outros”, explica. A ativista lembra que há mais países islâmicos tal como o Afeganistão, mas que “não impõem estas regras abusivas, como impedir que raparigas vão à escola e que as mulheres vão para a universidade”.

Por isso, para a responsável, é preciso agir. Mais do que nunca.

Fronteiras devem abrir e países têm de receber apoio financeiro, defende ONG

Ao Observador, Heather Barr explica que a principal prioridade da Human Rights Watch neste momento é ajudar quem “está em risco” e precisa de sair do Afeganistão “para própria segurança”. A responsável lembra também que a organização tem pedido que os países vizinhos do Afeganistão abram as fronteiras e permitam a passagem de quem quer sair. “É preciso também garantir formas seguras dos afegãos chegaram às fronteiras”, acrescenta.

E quanto aos Estados que já se mostraram disponíveis para receber refugiados — como é o caso de Portugal — considera que não podem ficar sozinhos. “Os países que vão receber refugiados afegãos devem receber apoio da comunidade internacional, para não terem eles próprios de suportar esse peso. Tem de haver esse apoio”, afirma.

Ministro da Defesa fala em “trabalho intenso” do Governo para receber civisn afegãos

O Governo anunciou na manhã desta quinta-feira que os primeiros refugiados afegãos chegam a Portugal ainda este mês. A prioridade, explicou em declarações aos jornalistas o ministro da Defesa, é retirar o mais rápido possível os estrangeiros que queiram sair e os colaboradores afegãos que trabalharam para organizações internacionais. O ministro já tinha garantido no fim de semana, quando os talibãs tomaram o poder, que o país iria abrir portas a esta população.

Os talibãs conquistaram Cabul no passado domingo, culminando uma ofensiva iniciada em maio, quando começou a retirada das forças militares norte-americanas e da NATO. A responsável pela Divisão dos Direitos das Mulheres da Human Rights Watch afirma ainda que os episódios de caos e violência que têm surgido no aeroporto de Cabul — e que já fizeram vários feridos — é responsabilidade dos Estados Unidos. Heather Barr considera que “o caos podia ter sido evitado” se a Casa Branca tivesse agido “de forma apropriada” antes da retirada das forças militares.

Ouça aqui na íntegra as declarações da responsável pela Divisão dos Direitos das Mulheres da Human Rights Watch, Heather Barr, ao Observador:

Afeganistão. Human Rights Watch está a receber centenas de pedidos de ajuda de pessoas que querem deixar o país

As forças internacionais estavam no Afeganistão desde 2001, no âmbito da ofensiva liderada pelos Estados Unidos contra o regime extremista. A tomada da capital afegã, Cabul, este fim de semana pôs fim a uma presença militar estrangeira de quase duas décadas no Afeganistão, dos Estados Unidos e dos seus aliados na NATO, incluindo Portugal.