O Prémio Nobel da Medicina foi atribuído aos cientistas David Julius e Ardem Patapoutian “pelas suas descobertas de recetores para temperatura e tato”. Os dois investigadores revelaram como o calor, o frio e o tato podem iniciar sinais no sistema nervoso, ligando-nos ao mundo que nos rodeia e ao nosso próprio organismo.

Os canais TRP e Piezo, os mecanismos encontrados por estes investigadores, “contribuem para várias funções que dependem da deteção de temperatura ou estímulos mecânicos”, indica o comité do Prémio Nobel: “Este conhecimento está a ser usado para desenvolver tratamentos para uma ampla gama de problemas de doença, incluindo dor crónica”.

De onde vêm as sensações? Dois cientistas desvendaram um mistério com milhares de anos

Um dos grandes mistérios que a humanidade enfrenta é a questão de como sentimos o ambiente em que estamos inseridos: há milhares de anos que os investigadores se interrogam sobre “como a luz é detetada pelos olhos, como as ondas sonoras afetam os ouvidos internos e como diferentes compostos químicos interagem com os recetores no nosso nariz e boca, gerando cheiro e sabor”.

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No século XVII, o filósofo René Descartes imaginou que as sensações viajavam em fios que ligavam diferentes partes da pele ao cérebro. Muito mais tarde, em 1944, o Prémio Nobel da Medicina foi entregue a dois cientistas, Joseph Erlanger e Herbert Gasser, que descobriram o que seriam esses fios: diferentes tipos de fibras nervosas sensoriais que reagem a estímulos distintos. Meio século mais tarde, David Julius e Ardem Patapoutian revelaram como é que eles funcionam.

No fim dos anos 90, David Julius quis perceber como é que a capsaicina, uma substância química presente na pimenta preta, causava as sensações de ardor associados a esta especiaria. O cientista criou uma biblioteca de milhões de fragmentos de ADN correspondentes a genes que são lidos nos neurónios sensoriais para estes reagirem à dor, calor e toque, incluindo um fragmento que codifica a proteína capaz de reagir à capsaicina.

Estes genes foram ativados individualmente em células de cultura que normalmente não reagem à capsaicina. Foi assim que David Julius encontrou um único gene capaz de tornar as células sensíveis à capsaicina, que codifica um canal com recetores para aquela substância química — canal esse batizado mais tarde de TRPV1.

“A descoberta do TRPV1 foi um grande avanço, abrindo caminho para a revelação de recetores de deteção de temperatura adicionais”, continua o comité do Prémio Nobel. Estes recetores do calor, assim como do frio e do tato, podem ser usados como alvo para terapêutica.

Ardem Patapoutian realizou uma experiência semelhante, independente da primeira, para descobrir os recetores do frio, utilizando o mentol para identificar o TRPM8, um recetor que se demonstrou ser ativado pelo frio. Outros canais iónicos — assim se chamam estes recetores — relacionados ao TRPV1 e ao TRPM8 foram identificados à conta do trabalho destes dois cientistas e ativados por diferentes temperaturas.

Na fotografia aqui em baixa, Ardem Patapoutian surge com o filho Luca, ambos deitados numa cama, a assistir à conferência de imprensa do Prémio Nobel da Medicina logo depois de saber que era um dos laureados.

Foi também Ardem Patapoutian quem descobriu como é que os estímulos mecânicos eram captados e convertidos em sensações de toque e pressão. O cientista identificou uma linha celular que emitia um sinal elétrico quando apenas uma das suas células era tocada por uma micropipeta. A equipa de Patapoutian assumiu que a reação era provocada por um canal iónico em particular e identificou 72 genes que codificam possíveis recetores.

Esses genes foram desligados e acionados um por um até se descobrir quais eram os responsáveis pela mecanossensibilidade — dois genes que, quando era inativados, tornavam as células insensíveis ao toque. Chamaram aos genes Piezo 1 e Piezo 2, a palavra grega para “pressão”. Descobriu-se posteriormente que os neurónios sensoriais expressam estes genes, que dão origem a canais iónicos ativados diretamente pelo
esforço de pressão nas membranas celulares.

Uma “grande alegria” que pode vir das anémonas

Pedro Lima, investigador e professor na Nova Medical School, admitiu ter sentido uma “grande alegria” quando soube que o Nobel da Medicina tinha sido entregue nesta área — a mesma sobre a qual ele mesmo se tem debruçado, tanto na investigação académica, como na spinoff daquela faculdade, Sea4Us.

Em entrevista ao Observador, Pedro Lima explica que o organismo humano é “uma sopa de iões”, átomos que perderam ou ganharam eletrões. Esta descoberta tem precisamente a ver como a “eletricidade dos neurónios” e com a forma como estes canais, presentes na membrana de células do sistema nervoso e do coração, por exemplo, medeiam a passagem dos iões. É a sensibilidade com que o fazem que determina as sensações que o sistema nervoso perceciona.

O investigador da Nova Medical School confirma que a descoberta deste mecanismo não é única apenas por aumentar a nossa compreensão do sistema nervoso, mas também porque abre portas a novos tratamentos para a dor crónica. Atualmente, uma das grandes apostas terapêuticas para atenuar essa condição (que pode ser causada por doenças como a diabetes, fibromialgia ou alguns cancros, por exemplo) é a utilização de opióides.

Mas, embora sejam instrumentos preciosos no tratamento da dor, os opióides podem provocar efeitos colaterais, como a própria dependência. A alternativa pode ser atenuar a atuação destes canais iónicos, evitando que funcionem de forma exacerbada. O que a Sea4Us tem feito é apostar num tratamento que usa moléculas extraídas de organismos marinhos como esponjas ou anémonas, retiradas por mergulho ao largo de Sangres. Estes seres também têm estes canais iónicos, que medeiam a entrada e saída de potássio das células, mas eles funcionam de forma a poderem suportar o ataque de predadores.

A ideia é que, incorporando essas moléculas no corpo das pessoas com dor crónica, será possível atenuar os sinais elétricos que permitem ao sistema nervoso ter uma perceção da dor. Pedro Lima resume dizendo que estes mecanismos “são essenciais para explicar o que é estar consciente” do mundo que nos rodeia e do nosso próprio organismo.

Prémios Nobel distinguem aqueles “que fizeram o maior benefício para a humanidade”

Este Prémio Nobel é uma distinção entregue anualmente a quem mais tenha contribuído para o desenvolvimento da medicina. Alfred Nobel, químico sueco que inventou a dinamite, reservou 94% da fortuna à criação deste e de outros quatro prémios (Física, Química, Literatura e Paz), que deveriam ser entregues “àqueles que fizeram o maior benefício para a humanidade”.

Este ano, o vendedor de qualquer Prémio Nobel ganhará 10 milhões de coroas suecas (cerca de 986 mil euros), mais um milhão (pouco menos que 96 mil euros) que em 2019 e sensivelmente o mesmo que no ano passado. De acordo com o Conselho de Administração da Fundação Nobel, o aumento do valor do prémio em 2020 é o resultado de um “reforço económico” feito na instituição nos últimos oito anos.

Em 2020, o Prémio Nobel da Medicina foi entregue a a Harvey J. Alter, Michael Houghton e Charles M. Rice, três cientistas que descobriram o vírus que provoca a hepatite C. De acordo com a Assembleia Nobel do Instituto Karolinska (Estocolmo, Suécia), os investigadores “tiveram uma contribuição decisiva contra a hepatite transmitida pelo sangue”, que causa cirrose e cancro no fígado. “A descoberta do vírus da hepatite C revelou a causa dos casos restantes de hepatite crónica e possibilitou exames de sangue e novos medicamentos que salvaram milhões de vidas”, nota a Assembleia.

Portugal já venceu um Nobel da Medicina. Em 1949, o neurologista António Egas Moniz venceu o prémio graças ao desenvolvimento da lobotomia, uma técnica de cirurgia cerebral que já não é utilizada na atualidade. Foi o primeiro de dois Prémios Nobel entregues a uma personalidade portuguesa (o outro foi o Nobel da Literatura, para José Saramago, em 1998) e o único na área da Medicina.

Entre os 222 laureados com o Nobel da Medicina, distribuídos por 111 edições, 12 são mulheres e apenas uma não partilhou o prémio com mais ninguém. O primeiro galardoado de todos foi Emil Adolf von Behring “pelo seu trabalho na soroterapia, especialmente a sua aplicação contra a difteria, pela qual abriu um novo caminho no domínio da ciência médica e, assim, colocou nas mãos do médico uma arma vitoriosa contra doenças e mortes”.