Título: As Melhores Crónicas de Amor
Autor: Miguel Esteves Cardoso
Editora: Bertrand
Páginas: 160

No ano passado, As 100 Melhores Crónicas foram publicadas pela Bertrand. Ali, destacava-se a ausência da temática sobre a qual versa este novo volume. São mais quase cem crónicas, todas sobre a temática amorosa, que, tal como o livro anterior, foram já publicadas em livro.

No conjunto de textos seleccionados, há alguma disparidade em termos de alcance, podendo até ver-se a evolução cronológica dos textos. Inicialmente mais amplos, terminam num cenário intimista, de coisa vista a partir de dentro, contrastando com a visão em simultâneo panorâmica e incisiva dos anteriores. São esses os de maior fôlego, já que, quando Esteves Cardoso se decide a ser amplo, voa. Assim, as crónicas dos anos 80 e 90 mostram o cronista em todo o seu esplendor, capaz de abarcar um mundo, capaz de ir ao osso. Esteves Cardoso agarra os clichés e escarrapacha-os num texto, pondo o ónus nos comportamentos repetidos e nas expectativas individuais, por vezes encontrando o comum do colectivo. De notar será a crónica “Primeiro amor”, talvez a mais bem conseguida. Ao pegar no cliché do primeiro amor como trauma que não passa, o autor garante a identificação por parte do leitor. De repente, não há como evitar o elo de empatia que se cria e um quase regresso à adolescência, seja enquanto fase temporal ou intensidade. Repare-se no seguinte trecho:

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“Nunca se percebe bem por que razão começa. Mas começa. E acaba sempre mal só porque acaba. Todos os dias parece estar mesmo a começar porque as coisas vão bem e o coração anda alto. E todos os dias parece que vai acabar porque as coisas vão mal e o coração anda em baixo.” (p. 29)

Não é preciso ter a coincidência biográfica para que o elo de empatia seja criado. O cronista, ao mencionar uma experiência como global, assume-se como sua parte integrante, e o que é apresentado como colectivo é visto como individual, e o que é visto como ridículo tem o desconto de ser um mal que bate a todos. Portanto, Esteves Cardoso pega no que todos vemos como um cliché: é a overdose de histeria e obsessão, a par com a ingenuidade de que o gás faz arder para sempre. E, ao mesmo tempo, vem com a sabedoria até irritante de quem já viu amores posteriores e sabe que o primeiro só encabeça a lista, e os seguintes poderão ser maiores, melhores e mais felizes. Numa só crónica, temos a ingenuidade de quem entra no abismo e o cinismo de quem já de lá saiu. Ora, esse cinismo não tem ponta de sobranceria, parecendo apenas a constatação de que não havia como ser de outra maneira.

Na primeira parte da obra, temos um estilo de crónica que já não é comum ver-se em Portugal, um pequeno texto que apanha o zeitgeist e que vai muito além do comentário do último assunto em voga nas notícias. Apanhar o zeitgeist aqui significa mostrar ao invés de explicar ou argumentar, e com a imagem criada fica dado o argumento. Como tudo aparece como cliché, a identificação ou não com o texto é indiferente, o que interessa é a carga dramática do que se assume como universal. Como aqui:

“Haverá coisa mais irritante que um ente amado que anda por aí a monte? Não seria melhor que estivesse preso, sem poder fugir, na masmorra sem fundo dos nossos braços? Que estará ele, esse ente, a fazer neste momento? Coisa boa? Isso é que era bom. Com quem? Boa pessoa? Isso é que era doce. Está a fazer, com certeza, a pior coisa possível – aquilo que lhe apetece – com a pior pessoa que existe à face deste mundo enorme – outra pessoa.” (p. 25)

Há momentos em que o intuito do colectivo é a emoção individual e não chega a entender-se se o que Esteves Cardoso apresenta é a experiência individual reproduzida ou se é a experiência colectiva individualizada. Ao ficar-se nesta fronteira, entende-se a crónica como uma oferta do possível. O que aparece como inquestionável é debatível e o narrador, que parece não se imiscuir nos factos, é afinal a única voz de que se pode duvidar. Assim, as crónicas são intensas, divertidas, amplas, emocionantes. Dentro do espectro emocional, vão a tudo.

Na segunda parte, o “eu” autoral transforma-se em personagem e, se numas crónicas temos o prenúncio da morte de um amor (morte física de alguém), a seguir temos o relato feliz da vivência de uma relação. Mas, como é sabido, a felicidade não resulta em literatura, razão pela qual se nota o desnível entre as primeiras crónicas e as últimas.

Ainda assim, esta última direcção funciona, depois do susto e da voracidade das primeiras páginas, como relato do amor compacto – aquele maior, melhor, mais feliz e mais duradouro do que o primeiro. Desta forma, a disparidade mostra a distância angular das várias vivências do amor. Seja lá o que o amor for.