É preciso fazer um acordo à esquerda para haver um Governo de esquerda, disso nenhum dos dois duvida. O problema é o caminho a fazer para lá chegar. E foi isso que Catarina Martins e Rui Tavares discutiram, esta terça-feira, em mais um debate pré-legislativas, em tom genericamente amigável (e “com toda a simpatia”, foi dizendo Catarina Martins) mas cheio de avisos de parte a parte sobre a melhor forma de lidar com o “obstáculo chamado António Costa” (expressão da coordenadora bloquista).
“Parece que estou a ouvir António Costa”, “lhe garanto que Costa que vai dizer que sim”, cuidado com as “propostas facilmente abraçadas pelo PS”. Do lado de Catarina Martins, os esforços para colar Rui Tavares — que ainda há meses concorria na lista de Fernando Medina a vice da Câmara de Lisboa — ao PS foram evidentes e constantes.
E, se ambos os partidos garantem querer ter condições para chegar a acordo com o PS — e os dois disputam um eleitorado muito semelhante –, Catarina aproveitou a experiência acumulada da geringonça para deixar avisos, retratando o Livre como uma espécie de parceiro demasiado benevolente ou demasiado ingénuo do PS. Por isso, lembrou que “não há uma linha” no programa do Livre sobre as leis laborais da troika — pedra basilar do discurso do Bloco — e que no mesmo programa se propõe meramente “estudar e equacionar a exclusividade no SNS”. “Garanto-lhe que Costa lhe diz logo que sim, cria um grupo de trabalho e passa dez anos a estudar e a equacionar”, ironizou.
Do lado de Rui Tavares, o debate foi passado a descolar-se dessa ideia de proximidade excessiva com o PS para dar lugar a uma outra: a da convergência. “Ninguém entendeu” que o Orçamento fosse chumbado; tanto quem diz que Costa quis uma crise política como quem diz que o Bloco foi “intransigente” pode ter razão; e o Livre quer tanto convergir com a esquerda que até concorreu a Oeiras em coligação com o Bloco, conseguindo pela primeira vez a eleição de uma vereadora no concelho, lembrou.
Depois, o desafio final: “A convergência não é só com o PS, lanço o desafio ao Bloco ao PCP, ao PEV e ao PAN. Precisamos de ter um Orçamento rapidamente, um programa de governo à esquerda viabilizado se a esquerda tiver maioria”. Para isso, a esquerda deveria, até ao dia 25 de Abril, chegar a acordo quanto a “um pacto social, progressista e ecológico com uma agenda de desenvolvimento para o país”. Mas quanto a isto, e mesmo depois de ter garantido que quer negociar à esquerda um acordo para a “legislatura” inteira, Catarina Martins ficou em silêncio.
Se quanto às divergências — ou antes omissões no programa eleitoral — apontadas pela líder bloquista o candidato do Livre acabou por concordar no conteúdo (o Livre é a favor da exclusividade no SNS e sempre favorável a mais direitos para os trabalhadores, frisou Tavares), o único ponto de verdadeira discordância programática teve a ver com a Europa.
Quando Catarina Martins, recusando entrar em “campeonatos de europeísmo”, atacou os acordos europeus e a conivência com políticas como as de Erdogan, na Turquia, Rui Tavares fez questão de frisar as diferenças formais entre os vários tipos de acordo, mas também garantir que a eliminação de regras do mercado interno viria beneficiar os países maiores — e a bloquista rapidamente tentou recentrar o debate e “voltar a Portugal”.
A Europa não é, aliás, terreno em que os dois adversários eleitorais se costumem entender dar bem — Rui Tavares passou a eurodeputado não inscrito, em 2011, depois de ter sido eleito nas listas do Bloco para o Parlamento Europeu, o que explica o clima de animosidade disfarçado entre os dois partidos concorrentes.
O diálogo mais revelador
Catarina Martins: Talvez sugerisse ao Rui Tavares que tivesse alguma calma com a distinção formal dos tratados face ao que a vida concreta nos prova. Ou seja, é cada Estado-membro, mas Portugal achou que não devia ficar de fora de uma política com a Turquia que humilha direitos humanos.
Rui Tavares: Estamos de acordo.
Catarina Martins: Da mesma maneira que o tratado orçamental também não é um tratado europeu, mas que Portugal também não se pôs de fora e aprovou. É um tratado que tira a capacidade de investimento do nosso país e da defesa dos nossos serviços públicos.
Rui Tavares: Estamos de acordo contra o tratado orçamental.
Catarina Martins: Às vezes quando se começa com muitos formalismo sobre a Europa e o que é uma coisa ou outra podemos perder o horizonte das nossas responsabilidades sobre o que o nosso país decide. O nosso país tem que estar do lado dos direitos humanos
Rui Tavares: Não, pelo contrário.
Catarina Martins: Ou a capacidade que o nosso país tem. O nosso país tem que lutar contra tratados como o tratado orçamental que nos impedem de responder à vida das pessoas.
Rui Tavares: Mas acho que é preciso deixar claro que há tratados dos quais saímos sozinhos, se quisermos. Do tratado a Turquia sairemos se tivermos força para tal, sozinhos se quisermos. O que é diferente de procurar negociar tratados a 27, estamos entendidos sobre isso.