“Um lavagante cozido em água ou a vapor também pode ser colocado na grelha com a casca virada para cima, três a cinco minutos, antes de ser servido” (p. 211). Essa é a parte mais simples — e que antecede a mais deliciosa… —, mas para se chegar aí houve um longuíssimo processo que fez deste invertebrado, cuja longevidade de inimagináveis 140 ou 450 milhões de anos muito deve à dureza do seu esqueleto externo endurecido a cálcio, o rei dos crustáceos e “um dos mais valiosos mariscos do mundo” (p. 9), uma cotação recente, aliás, pois durante séculos esteve longe de ser assim, como Weber e Santos esclarecem historicamente neste bom livro.

Tanto Aristóteles como Plínio referem-se ao lavagante nos seus tratados (p. 147). Lineu chamou-lhe em 1758 Cancer gammarus. Na Noruega, Suécia e Dinamarca chamam-lhe hummer (mas hummeri na Finlândia), na Inglaterra, Escócia e Irlanda common lobster, em Marrocos taroucht, na Croácia, Sérvia e Montenegro hlap, em França hommard e em Espanha bovagante, embora a exploração comercial do lavagante europeu — três vezes mais valorizado, pela escassez ou já raridade, do que o seu parente ultra-ocidental, o Homarus americanus, que abunda por lá, em particular no Maine (60 mil toneladas ao ano!, p. 59) — encontra-se hoje praticamente circunscrita ao norte da França, Grã-Bretanha e Irlanda, onde a pesca intensa e excessiva está a dizimar populações também castigadas por aquecimento e acidificação oceânica, CO2 atmosférico a mais, poluição marítima por metais pesados e novos agentes infecciosos. “Populações do lavagante na Escandinávia e em muitos países mediterrânicos colapsaram nos anos 60 e não conseguiram recuperar até hoje” (p. 100). Em contrapartida, a pesca do lavagante em águas canadianas foi considerada “uma das mais lucrativas do mundo em 2019” (p. 154).

Actualmente só o acréscimo de Áreas Marinhas Protegidas, ou de Reservas Marinhas absolutas, pode garantir conservação e protecção de espécies e habitats. Os autores estão envolvidos desde 2006 numa experiência de repovoamento de lavagante e sua monitorização na costa rochosa da praia da Aguda (ali entre Gaia e Espinho), com a indispensável cooperação dos pescadores locais. Ao menos alguns capítulos deste livro podem servir de guia para intervenções congéneres noutras partes do país, ilhas incluídas.

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Título: O Lavagante, rei dos crustáceos
Autores: Mike Weber e Assunção Santos
Editor: Afrontamento
Páginas: 243

O bicho, seja dito, é um tanto esquisito. O seu cérebro está localizado na garganta, os rins na cabeça, ouve com as patas e cheira com as anténulas, tem o paladar nos pés e o sistema nervoso instalado num estômago dotado de dentes molares que fazem as vezes dum “moinho gástrico” (p. 23). Muda umas vinte vezes de casca até alcançar 330 g de peso, 8,5 cm de de cefalotórax e 30 cm de cumprimento total (p. 45). Ao contrário de muitos, e de nós, cresce até morrer, conservando fertilidade e metabolismo, “criando novas células musculares em cada muda” (p. 87). O seu sangue é azul, mas é o pigmento antioxidante Astaxantina que lhe dá essa cor à casca dura, um panscrutáceo dito “gafanhoto” marinho pois o seu nome deriva do locusta latino (p. 9). Essa coloração varia da juventude à velhice, que pode chegar aos 100 anos duma vida particularmente solitária e nocturna, passada em habitats rochosos, num raio de acção muito limitado, de c. 250 m (p. 46). O lavagante alimenta-se de organismos moribundos ou mortos no fundo do mar, também aprecia sardinhas, lulas e caranguejos, e simplesmente não come nos meses mais frios do Inverno. A “garra esmagadora” é a esquerda, a direita, fina e alongada, serve-lhe para cortar, mas a posição inversa também ocorre, como mostram algumas fotografias do livro.

“A urina é crítica para o estabelecimento e a manutenção do nível de dominância social e do comportamento sexual de ambos os sexos” (p. 35). A sua vida sexual é considerada “complexa” — todo um neologismo… — pois só as fêmeas escolhem parceiros, e fazem-no unicamente nas tocas deles. Estudo de 2009 revelou “alta agressão feminina e baixos níveis gerais de ritualização no lavagante europeu”, e no entanto o acasalamento dá-se entre um macho de carapaça dura e uma fêmea de carapaça macia e nova, logo após muda feita no refúgio dele (fotos p. 34). Wilfred Templeman provou em 1934 que “o esperma pode ser armazenado pela fêmea, sem perder as suas características, por um período de até dois anos” (p. 33)… Além disso, “costuma guardar os ovos por nove meses” (p. 100; fotos p. 39).

A sua figura por vezes quase monstruosa prestou-se muito bem a representações pictóricas, das naturezas-mortas flamengas, como a de Pieter de Ring (1650; p. 165), aos admiráveis Lavagante, dois limões e azeitonas pretas do esloveno Anton Gvajc Jastog (c. 1900; p. 173) e Rapazes surpreendidos a observar um lavagante do dinamarquês Carl Bloch (1878; p. 169), da ilustração científica do francês Claude Aubriet (c. 1600; p. 150) à gravura oitocentista para grandes publicações periódicas, da joalharia à publicidade comercial e à embalagem de conservas, da filatelia a velhos bilhetes-postais fotográficos. Distinguiu-se também em obras de Salvador Dalí — o famoso telefone-lavagante de 1938 e a fotografia de 1939 —, Andy Warhol, Jeff Koons ou do costureiro britânico John Galliano (p. 181). Em Março de 1958 foi capa da revista The New Yorker, pelo traço do prolífico Arthur Getz: um enorme lavagante vermelhão é pintado na empena dum restaurante portuário por um operário montado num escadote alto (p. 73). E a famosa cerveja irlandesa fez uma placa publicitária com a frase “Lobsters love Guiness” (foto p. 211).

Weber e Santos esqueceram-se da presença do lavagante na literatura de Théophile Gaultier (1881) — e de José Cardoso Pires… — e deixaram pelo caminho, na sua pesquisa iconográfica, por exemplo o impactante Natureza-Morta com Lavagante do neerlandês Jan Davidszoon de Heem, pintado na década de 1640 e hoje pertença ao norte-americano Toledo Museum of Art, por oferta mecenática, e o não menos excelente Lavagante, Fruta e Vidros de Philips Gijsels (1642), no Collection Burrell Museum, na escocesa Glasgow, que nos mostram como o imponente crustáceo vermelho foi um dos temas centrais da pintura flamenga. A resenha literária é contudo atenta e actualizada (v. pp. 162-64).

A pesca faz-se por armadilhas lançadas — de Janeiro a Setembro, seguindo a legislação portuguesa de 2009 — junto à costa, em geral por embarcações pequenas. O isco usado é de cavala, carapau ou sardinha. Em diferentes formatos e materiais, madeira primeiro, arame depois e plástico agora, nos covos cobertos a rede há sempre um dispositivo afunilado que bloqueia a saída. Aspecto muito relevante: “A pesca com armadilhas é uma pesca com um impacto ecológico mínimo, o que dá óptimas credenciais à indústria dos mariscos. Os animais capturados mantêm-se vivos sem ferimentos, o que significa que fêmeas com ovos, lavagantes de tamanho inferior ou marcados [com entalhe V num urópode da cauda, protegendo desovas futuras] podem ser libertados e devolvidos vivos ao meio natural” (p. 55). Nas políticas de conservação e protecção, estão a ser avaliados mecanismos de escape para espécimes menores, e redes biodegradáveis para que lavagantes capturados possam escapar de armadilhas que sejam perdidas no mar.

Portugal — ao contrário de Espanha e Itália, por exemplo — é que ainda não aderiu ao European Lobster Centre of Excellence, criado em 2003 para promover a aquacultura terrestre e programas de repovoamento do lavagante europeu, e que tem na Islândia, por vontade política e energia geotérmica em condições muito favoráveis, o seu maior caso de sucesso. Na Noruega as coisas também progrediram bem em poucos anos, desde então, apesar do obsessivo canibalismo da espécie quando em cativeiro ou até em simples vizinhança (em 1908 um Thomas Jensen registou a patente norte-americana de “amarrar as garras do lavagante”: fig. 134, p. 70). Na Inglaterra funciona uma maternidade nacional de lavagantes em diferentes estádios larvares que — sempre separados — passam a cestas submersas no mar, que lhes permitem alimentar-se de organismos marinhos e conhecer potenciais predadores, “cujo contacto o[s] prepara[m] para a vida no mar, tornando este método importante no acondicionamento ecológico dos lavagantes cultivados” (p. 119). Na ria de Arousa, galegos seguiram este método de cultivo mas recorrendo a cestas utilizadas no cultivo de ostras, conseguindo melhorar o crescimento e a pigmentação dos lavagantes juvenis. E na Estação Litoral da Aguda testaram-se três dietas criadas por uma empresa de Olhão, duas das quais se revelaram eficazes, ao longo da experiência de 90 dias, nos parâmetros essenciais.

Os autores concluem que na Europa os resultados são ainda insuficientes para uma aquacultura comercial em grande escala ou para satisfazer os esforços decorrentes para repovoamento a médio ou longo prazo (p. 124), ainda que entre 1983 e 2013 mais de 1,4 milhões de lavagantes criados em cativeiro foram libertados nos mares da Europa” (p. 131). Para que os lavagantes juvenis lançados ao mar se adaptem e sobrevivam, recifes artificiais foram projectados especificamente para eles, combinando também resíduos sólidos descartáveis, pedras, substrato arenoso e um sortido de fendas habitáveis para todos os tamanhos de animais residentes.

Para esse repovoamento, a ciência está activa e empenhada, mas falta algo mais e há ainda um caminho a percorrer. Livros como este trazem — à sua maneira — as políticas do Mar para o debate público, numa altura em que a disputa eleitoral recente pareceu vergar-se ao acessório, ao imediatismo e ao situacionismo. E contra isso, nem mesmo a receita de arroz de lavagante como a da p. 215, ou da Sopa de Lavagante à Helgoland, na p. 222, parecem ser capazes de nos valer ou contentar…