Era o deus de Bukowski, mas nunca conheceu tantos leitores. John Fante, que nasceu em 1909 e morreu em 1983, marcou pelo seu humor cáustico e pelo traço firme da prosa. Tal como Bukowski viria a fazer com Chinaski, seu alter ego, Fante teve Arturo Bandini, centro do seu trabalho mais citado, Pergunte ao pó (1939). Bandini esteve presente numa série de quatro romances, publicados em 1938 e 1985, a que se chama “O Quarteto Bandini”, e que começa com este A primavera há-de chegar, Bandini (1938). Sonhos de Bunker saiu em 1982 e Rumo a Los Angeles saiu em 1985, apesar de ter sido o primeiro escrito pelo autor, fechando o círculo.

Fante começou a escrever aos 20 anos, tendo publicado o primeiro conto em 1932. A primavera há-de chegar, Bandini (1938), que é um retrato de um adolescente turbulento no meio dos conflitos familiares, também eles turbulentos, ainda traz os traços de uma prosa que começa a tactear. Nota-se, principalmente quando o autor se mete em explicações ou tenta forçar a graça, que ainda está a trabalhar a forma de o trabalhado parecer natural ao leitor. A premissa, ainda assim, é logo ambiciosa, já que os conflitos familiares se metem no contexto da pobreza e da religião numa pequena localidade do Colorado durante a Grande Depressão. Arturo Bandini é o filho mais velho de uma família de imigrantes italianos, e essa condição perpassa toda a obra, já que o preconceito social para com os imigrantes, e para mais italianos, parece atingir a personagem, que vai querendo renegar o seu estatuto de vindo do exterior:

Arturo deixaria aquela maldita escola de freiras e matricular-se-ia num liceu público, onde os italianos eram escassos e estavam bem distribuídos pelos diversos anos.” (p. 45)

A passagem para a adolescência acontece no decurso do romance, que não se foca apenas na perspectiva individual. Afinal, Fante imbuiu as personagens do seu contexto social, e as condições de partida nunca ficam à margem. Ao vermos os traços da vida de Arturo, também vemos o que é a vida dos seus pais: o pai desespera com a falta de trabalho, procurando o abraço do álcool; a mãe, católica, beata, é um misto entre submissão e autoritarismo. Arturo quer uma vida para além da estrutura familiar e vai fantasiado com a sua paixão adolescente.

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Título: A primavera há-de chegar, Bandini
Autor: John Fante
Tradução: Rui Pedro Cabral
Editora: Alfaguara
Páginas: 248

Arturo é sempre apresentado como alter ego de Fante, e é bom ver que essa experiência não o obriga a encarcerar a prosa na visão de um eu. Por Arturo, dá para ver a vida de uma comunidade imigrante italiana. Para além dos toques da adolescência (a paixão exacerbada, uma espécie de indignação constante), temos o retrato da pobreza num país que promete a riqueza a quem chega. Se a religiosidade decepa as oportunidades de vida – ou a possibilidade de expandir a vida –, o sistema económico vive da vulnerabilidade de quem não atinge o sucesso prometido, e que é afinal uma luz que brilha sempre ao longe. Contra essa ilusão, existe a realidade. Assim, a utilização de Arturo permitiu a Fante duas perspectivas: uma é a da relação directa com uma personagem, que obriga à empatia do leitor ao criar um vínculo directo à cabeça do rapaz; outra é a do quadro global, que compõe o enredo e não deixa pontas por atar.

Claro que tudo isto tem algumas falhas de coesão. O amor trágico da adolescência tem a sua graça, mas parece aparecer aqui e ali para pontilhar da leveza da ironia alguns pontos do romance. O tom explicativo, por vezes, parece forçar a metáfora, no que é uma característica de uma prosa ainda a formar-se, ganhando consistência, como podemos ver aqui:

A casa ainda não estava paga. Era sua inimiga, aquela casa. Tinha voz e estava sempre a falar com ele, como um papagaio, sempre a palrar a mesma coisa.” (p. 14)

Nota-se, ainda assim, que Fante não é autor de cair em pretensões. Pelo contrário, aposta num tom leve, salienta as ironias, sabe olhar com sarcasmo para as situações das personagens:

Chamava-se Maria e estava sempre a dizer-lhe coisas que ele já sabia. Será que ele precisava que lhe dissessem que o Natal estava quase a chegar. Estavam a 5 de dezembro. Quando um homem se deita ao lado da mulher numa noite de quinta-feira, será que precisa que ela lhe diga que amanhã é sexta?” (p. 20)

Fante compôs bem um quadro, e este romance, que marca os primeiros passos da sua narrativa longa, já vem imbuído de uma arquitectura rija, de personagens carismáticas e de um olhar que sabe salientar a luz das coisas. A utilização de Arturo permite ainda o contraste entre a dureza da vida e um olhar tão jovem que acha que ainda pode tudo.

A autora não escreve de acordo com o Acordo Ortográfico