A presença africana no continente europeu, geralmente associada ao período moderno, tem uma história muito mais antiga, que remonta aos primeiros séculos do império romano. A historiadora Olivette Otele, especialista em História da Escravatura, procurou no seu mais recente livro, Europeus Africanos. Uma história por contar, traçar as diferentes formas que essa presença tomou, tomando como exemplo as vidas de ilustres conhecidos e desconhecidos que conseguiram de alguma forma escapar ao preconceito e integrar-se na sociedade europeia.

Os episódios selecionados, decorridos entre os séculos III e XXI, em várias regiões da Europa, são relatados ao longo de sete capítulos, organizados cronologicamente, mas com várias incursões ao tempo presente — uma forma que Otele encontrou de fazer a ponte entre realidades nem sempre tão distantes. Apesar de interessante, a abordagem torna o livro cronologicamente confuso e obriga o leitor a fazer um exagerado esforço mental para acompanhar a narrativa, que anda para trás e para a frente ao sabor do pensamento da historiadora nascida nos Camarões. Eventos e personagens misturam-se com as considerações da autora, que muitas vezes remete para o trabalho de outros investigadores. As citações são tantas que ficamos com a sensação que Europeus Africanos tem, afinal, muito pouco de original, uma vez que se sustenta em investigações prévias e não no trabalho da própria autora.

As leituras de Otele parecem ter ditado as histórias selecionadas e as regiões analisadas. Por exemplo: são vários os momentos em que a investigadora se refere à história colonial francesa e holandesa e ao papel que estes povos tiveram na história da escravatura. Por outro lado, são quase nenhumas as passagens em que alude a Portugal e muito poucas as que falam de Espanha (embora um dos capítulos seja quase inteiramente dedicado a um escravo de Granada, Johannes Latinus). A presença negra no Reino Unido é aludida apenas brevemente no último capítulo sobre os europeus africanos de hoje, num parágrafo em que a historiadora remete para o trabalho de investigadores como Miranda Kaufmann e Michael Ohajuru, que “analisaram profundamente os Tudors negros em Inglaterra”. Uma decisão que dificilmente se compreende, uma vez que Otele, que vive e trabalha no Reino Unido, é autora de uma monografia sobre a história da escravatura britânica.


Título: Europeus Africanos. Uma história por contar
Autor: Olivette Otele
Tradutor: João Cardoso
Editora: Editorial Presença
Páginas: 279

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A história do europeu africano Johannes Latinus (séc. XVI) é uma das mais interessantes de Europeus Africanos — desafiando as conceções de negro e estrangeiro, Latinus obteve o grau de Mestre em Artes da Universidade de Granada (onde se destacou pelo domínio do latim) e escreveu várias obras que falam sobre a visão de Granada do seu tempo sobre o estrangeiro e o não cristão; numa altura em que era incomum a união entre um negro e uma mulher branca, casou com Ana de Carleval, filha do caseiro das propriedades do duque de Sessa, de quem era próximo; e sem nunca esquecer as suas origens, designou-se como Juan, o Etíope, nome que pretendia salientar a sua faceta de cristão, estrangeiro e negro.

Outra história que se revela especialmente interessante pelo seu excecionalismo, mas também pelas suas aparentes contradições, é a de Jacobus Capitein (séc. XVIII), que Otele relata no capítulo 3. Capitein, que recebeu uma educação cristã e branca por intermédio do homem que o levou como escravo para os Países Baixos, aprendeu francês e frequentou a Universidade de Leiden (a mais antiga do país), onde em 1742 defendeu uma tese a favor do batismo de homens e mulheres escravos, considerando, porém, que esta não significava a sua emancipação. Otele refere que a crítica sobre a posição de Capitein “tem sido virulenta”, mas lembra que, ao contrário da grande maioria dos escravos, ele “beneficiou de uma excecional educação entre os mais afortunados, tendo alcançado, na época, um nível de instrução frequentemente negado às pessoas de ascendência africana”. Esta foi possível graças ao sentimento paternalista do seu proprietário e benfeitores, que, recorrendo à tese de Stanley Elkins, Otele define como “uma forma de os proprietários dos escravos definirem as suas ações de cuidados a africanos supostamente desafortunados, mas também um meio de sobrevivência pelo qual os escravos conseguiam navegar nas águas turvas da opressão”.

A noção de “excecionalismo”, que fez certos europeus africanos “merecedores” de verem a sua história contada por europeus, é fundamental em Europeus Africanos, tendo servido de guia à recolha feita pela professora da Universidade de Bristol. No capítulo introdutório, Otele explica que o “excecionalismo” é “uma ferramenta interessante para compreender a História”, porque lança luz “sobre episódios que se entrecruzam com classe, género, religião, raça, entre outras”, possibilitando “análises transnacionais e interculturais que poderão ajudar a estabelecer pontes entre diferentes episódios e países, fomentando ideias contraditórias”. Por outro lado, apresenta-se como “uma noção que desempenha um papel nos estudos sobre raça”. “Dienke Hondius afirmou que o execionalismo foi o último dos cinco padrões que formataram a história europeia da raça e das relações raciais”, argumentando que, no tratamento dos africanos, a Europa oscilou sempre entre “infantibilização, exoticismo, bestialização, distanciamento e exclusão, e excecionalismo”, cita a investigadora.

Igualmente interessante é a atenção dada pela historiadora a nações que raramente são incluídas na narrativa esclavagista. É o caso da Dinamarca, cujo papel no comércio e transporte de escravos só recentemente começou a ser recuperado, muito graças aos esforços realizados por historiadores e ativistas, que culminaram num pedido de desculpas público por parte do governo dinamarquês, em 2018. Segundo a informação recolhida pela historiadora e professora de História da Escravatura na Universidade de Bristol, a Dinamarca foi responsável pela transferência de 111.040 cativos africanos, transportados a bordo de embarcações dinamarquesas e bálticas, antes de se tornar na primeira nação a abolir o comércio de escravos.

Europeus Africanos não fala apenas da presença africana no continente europeu — aborda também a presença europeia no continente africano. Otele diz que esta é apresentada de “forma indireta, pois a maior parte das histórias deste livro é sobre pessoas que deixaram o continente”, mas não é tão indireta quanto isso. No capítulo 4, por exemplo, a historiadora relata o caso particular das signares (palavra que tem origem no português “senhora”) das ilhas Goreia e São Luís, ao largo do Senegal. Estas mulheres, que eram originariamente as companheiras dos europeus nas ilhas, transformaram-se numa distinta categoria social, económica e cultural no Senegal, acumulando riqueza e até detendo escravos. O episódio mostra como a influência europeia deixou a sua marca, profunda, no território africano, mas não se entende a sua inclusão num livro que é apresentado como uma história dos africanos na Europa.

O tema é pesado, mas Europeus Africanos termina com uma nota de esperança. Afirmando que a história do povo africano na Europa deve ser ensinada, amplamente analisada e valorizada, porque é capaz de nos fazer regressar “à natureza humana, funcionando também como lembretes de que a ‘Humanidade’, em si, é um conceito volúvel”, Otele explica que o seu livro pretende ser “um convite para analisar estas experiências e ver como cada um pode conduzir a sua vida de forma diferente. As histórias libertadoras aqui incluídas mostram que a cooperação e o apoio acabarão por prevalecer”, diz a autora, que defende que “o caminho para a igualdade tem de ser facilitado pelo acesso ao poder político e por uma significativa representação em todas as disciplinas, indústrias e instituições. É um caminho que teremos de construir juntos”, lembra.

Em Europeus Africanos, Olivette Otele procurou cartografar a presença negra no continente europeu, desde a Antiguidade à Modernidade, mostrando as diferenças formas como a raça e o corpo negro foram sendo percecionados pelos europeus ao longo dos séculos e explorando questões como a identidade, a cidadania, a resiliência ou os direitos humanos. Para isso, a investigadora e professora nascida nos Camarões recorreu a um vasto conjunto de obras, cujos os autores refere de forma explícita ao longo do livro, sem se limitar a remetê-los para as notas finais. A honestidade intelectual com que o faz é de louvar, mas é impossível o leitor não se questionar porque é que a autora não tentou ir mais fundo na análise, investigando ela própria algum tipo de documentação.

É certo que Europeus Africanos tem o mérito de tornar acessível ao público não especializado referências bibliográficas que de outra maneira não conheceria, impulsionando ao mesmo tempo uma reflexão profunda sobre a forma como os corpos negros foram percecionados ao longo da história europeia, mas a falta de interesse da historiadora, com um vasto currículo no estudo da história da escravatura, nas fontes principais não deixa de ser extremamente dececionante. O livro acaba por ser mais uma apresentação do estado da arte sobre o tema da presença africana na Europa do que um estudo original, e os comentários de índole pessoal não são suficientes para sentir que a voz da autora atravessa as páginas de Europeus Africanos.

Mas o maior problema tem a ver com a estrutura. Confusa e cronologicamente instável, torna-se difícil acompanhar a história que está a ser contada. Por exemplo: o capítulo 4, “Nem aqui nem ali”, começa com a descrição de algumas teorias raciais dos séculos XVII e XVIII (no seguimento de várias histórias sobre filhos de negros e brancos relatadas no capítulo anterior) e de um romance helenístico do século III que aborda a questão da cor da pele; depois disso, a investigadora fala sinteticamente sobre as ideias de Napoleão sobre raça (sugerindo que algumas tiveram origem na sua primeira mulher, Josefina de Beauharnais, oriunda de uma família com ligações ao comércio de escravos e de açúcar), avançando depois para a relação dos artistas com os temas negros e para a história das mulheres africanas europeias, o tema central do capítulo. Tudo isto em apenas seis páginas.

Isto vai-se repetindo ao longo de toda obra. Com a ânsia de dizer e contar tudo, Olivette Otele criou um livro onde é fácil o leitor perder-se — mas não no bom sentido.