Este artigo foi originalmente publicado no 7.º número da revista DDD – Dê de Delta.

Fotografia: Marisa Cardoso

Noor Palma

Noor Palma, 30 anos. Profissão: Dona do ginásio Circle. Horário: Acorda às 4h45

Foi só há cinco anos que Noor Palma mudou o seu estilo de vida, mas parece que foi já noutra vida. À hora a que hoje acorda para ir treinar, nessa altura estaria a sair da discoteca. Foi um tempo em que despertava sem vontade de sair da cama. Tinha um mestrado em psicologia criminal tirado em Londres para o qual não encontrava uso em Lisboa. Quando olhava ao espelho, não gostava do que via. Pesava mais 20 kg. Como queria emagrecer, inscreveu-se num ginásio e, passo a passo, começou a transformar-se. Começou a acordar às 11h, depois às 9h, às 7h e hoje, quando sai da cama para ir treinar, o relógio marca muitas vezes 4h45. Depois de beber um café, vai para junto do rio ou para o ginásio que cofundou há dois anos, o Circle, com treinos de movimento, agilidade e força através de uma plataforma interativa. O ginásio só abre às 7h, mas não há horários para quem tem as chaves. Noor regressa a casa pelas 7h, toma banho, pequeno-almoço e está, agora sim, pronta para começar o dia, que a partir das 8h o telefone não tem descanso. Acordar de noite é a forma de Noor se encontrar antes de o dia começar.

Francisco Pina

Francisco Pina, 30 Anos. Profissão: Torrador. Horário: 21h-5h

As máquinas de torrefação da Novadelta nunca param. A cada 21 minutos está a sair uma nova torra acabada de fazer. São 500 kg de café em grão fumegante que passam por Francisco Pina de cada vez que abre a porta da máquina no fim do processo. Se se atrasar um minuto que seja, o café vai ficar demasiado torrado. É um trabalho de atenção ao detalhe. Francisco já bebia café antes de trabalhar na torrefação da Novadelta, mas bebe mais de noite desde 2016, quando começou a trabalhar por turnos – e quem trabalha na fábrica, trabalha por turnos. Mas nem o aroma de café torrado que o acompanha oito horas por dia lhe tira o prazer de um expresso. Os horários são três e mudam a cada semana, por esta ordem: das 21h às 5h, das 13h às 21h e das 5h às 13h. Francisco vive em Elvas, a 25 km de Campo Maior. Durante o dia, quando não trabalha, gosta de andar de bicicleta e de estar com a mulher. Sestas é que não – se tem de entrar às 5h, então deita-se mais cedo. Prefere, contudo, sair às 5h e, nessas semanas, seguir direto da Novadelta para a sua cama.

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Filipa Lalanda

Filipa Lalanda, 44 anos. Profissão: Controladora de Tráfego Aéreo. Horário: 22h-8h.

Estudou comunicação social, mas foi parar ao mundo da publicidade. Não seria o único desvio na rota de Filipa Lalanda. Filha de uma controladora de tráfego aéreo, foi já com 24, quase a atingir a idade limite para concorrer ao curso, que deixou para trás a vida de publicitária decidida a seguir as pisadas da mãe. Pela frente, ano e meio de curso – onde entrou à segunda – e quatro no Controlo Atlântico, na ilha de Santa Maria. Entre 2008 e 2015 esteve na Torre do Aeroporto de Lisboa, a controlar os aviões que aterram e descolam. Desde então trabalha no Radar, com os olhos postos no céu que cobre Portugal. Depois de três dias, folga dois. E a cada dia, um turno diferente: no primeiro faz 14h-22h, no segundo 8h-14h, depois 22h-8h, folga, folga e volta ao início. Em noite de trabalho, Filipa dorme a sesta. Não há passeios ou sair para tratar de assuntos quando sabe que à noite terá de estar desperta e atenta. Se por algum motivo não conseguir descansar durante o dia, como já tantas vezes aconteceu, só lhe resta ir trabalhar e aguentar-se acordada. Surpresa: nunca bebeu café – adora o cheiro, mas não o sabor.

Marco Pinto

Marco Pinto, 51 anos. Profissão: Vigilante Noturno do MNAA. Horário: 00h-9h.

A chuva a cair à noite no telhado do Museu Nacional de Arte Antiga e o vento a bater nas paredes dão a banda sonora ideal para as rondas de Marco Pinto. Para o vigilante noturno do museu, é um privilégio poder desfrutar sozinho das obras de arte num ambiente de absoluto silêncio – fora a Natureza a fazer das suas. Nunca houve sequer uma tentativa de furto nos 18 anos que leva no MNAA, mas sustos não faltaram. Seja porque encontrou um espaço vazio onde na noite anterior estava um quadro, que depois veio a apurar-se ter sido emprestado, ou porque os crónicos problemas de infiltrações do museu o obrigaram a mudar a Adoração dos Magos de lugar, para que não chovesse em cima de uma das pinturas maiores de Domingos Sequeira (1768-1837). Num mês trabalha das 17h à meia-noite, no seguinte da meia-noite às 9h e volta a trocar. Bebe apenas um café ao jantar e outro de manhã antes de picar o ponto, que é para manter a destreza até chegar a casa. A família diz-lhe para ir logo dormir, mas não é assim que funciona. É preciso descomprimir primeiro, resolver assuntos, apanhar sol. Mas dorme sempre 7 a 8 horas, nem que isso signifique sair da cama às 20h.

Luís Ferreira

Luís Ferreira, 48 anos. Profissão: Rulote Parybeb. Horário: 22h-6h de terça a sábado.

Ainda a rulote Parybeb não subiu o toldo nem ligou as luzes e já há carros estacionados por perto com gente dentro. Aguardam a hora da bifana, do hambúrguer, do cachorro, da pita shoarma e da cervejinha. Há mais de 30 anos que a hora está marcada, e ninguém se atrasa. Das 22h às 6h, de terça-feira a sábado (outro empregado trabalha na rulote ao domingo e à segunda-feira), Luís Ferreira é o homem do leme, o mestre da chapa e dos comes e bebes, sempre com uma piadinha e uma resposta rápida prontas a sair. Já trabalhou em restaurantes e cafés, foi ajudante de camionista e está nesta rulote há 28 anos. Primeiro na Avenida 24 de Julho, em Lisboa, e, desde há cerca de 15 anos, onde está agora, na interseção da Avenida dos Estados Unidos da América com a Almirante Gago Coutinho. Vive em contraciclo permanente, a dormir durante o dia e a trabalhar de noite. Depois de fechar a rulote às 6h e de a limpar, Luís ainda vai ao armazém. Só depois é que chega a casa, em Arruda dos Vinhos. Come o jantar à hora do pequeno-almoço, toma banho, vê um pouco de televisão e só então, quase às 9h da manhã, é que diz boa-noite.

Nos bastidores da DeltaQ

Fugir aos estereótipos da publicidade tradicional era o objetivo. A ideia? Destacar profissões por vezes pouco valorizadas, de pessoas fundamentais para o normal funcionamento da sociedade e que merecem ser vistas, ouvidas e enaltecidas. Para o fazer, a agência NOSSA propôs à direção de marketing e comunicação da Delta Q a criação de uma série documental que mergulha na vida de quem trabalha à noite. Disto resultou a campanha Delta Q ContraCiclo, estreada em dezembro de 2021 no YouTube, e que já vai em duas temporadas de três episódios cada.

A realização esteve a cargo de António Aleixo, cineasta distinguido em 2019 com o prémio Sophia de melhor curta-metragem documental. “É uma pessoa muito especial na área do documentário”, considera Vasco Teixeira-Pinto, digital partner da NOSSA, sobre o realizador. “Identifiquei-me de imediato com o projeto”, diz, por sua vez, António. E acrescenta: “De há 10 anos para cá, sinto que o documental é o futuro, sobretudo agora que as campanhas têm maior evidência no online e não na televisão”.

Sem os constrangimentos formais de um spot publicitário, sobra mais tempo para contar histórias. Como a da padeira que acorda às 2h da madrugada para ir trabalhar ou o taxista que sai de casa por volta das 22h30, conduz até de manhã e só se deita depois de tomar o pequeno-almoço com a família e de levar a filha à escola. A equipa de filmagens acompanhou o que seria um típico dia de trabalho – aliás, uma típica noite de trabalho. “Não lhes pedimos que nessas noites estivessem totalmente disponíveis para nós, mas que fizessem a sua vida normal reservando algum tempo para, de vez em quando, pararem e falarem para a câmara”, recorda António Aleixo.

Para acompanhar quem vive em contraciclo, também António e a sua equipa de sete (mais os elementos da NOSSA e da Delta Q que marcaram presença na rodagem) tiveram de viver no sentido oposto do ponteiro do relógio. Tiveram de mudar o chip. Disseram-lhes que depois de uma noite de trabalho dormiriam o dia todo, mas o que verificaram é que o descanso não é o mesmo. “Ao fim de alguns dias chegou a bebedeira do sono, em que estávamos tão cansados que só dava para rir.”

Tratar histórias reais desta forma era algo que a Delta Q nunca tinha feito. “Desde o primeiro conceito que a questão documental representava algo de inédito para nós. Queríamos ouvir a verdade das pessoas, que não fossem personagens”, diz Mónica Oliveira, diretora de marketing e comunicação da Delta Q.

O lado documental percebe-se melhor se se disser que o episódio da enfermeira que trabalha por turnos no Hospital de Faro foi filmado dentro da Unidade de Cuidados Intensivos (covid e não-covid). A equipa foi reduzida ao mínimo: apenas realizador e os diretores de fotografia e som, e máscaras especiais foram usadas para limitar a possibilidade de contágio.

Já o episódio do pescador foi filmado em mar alto. “Fez um frio horrível”, recorda o realizador, que saiu de casa à meia-noite e esteve no barco de pesca até às 7h30. Foi preciso viver mais um pouco em contraciclo para filmar as histórias de quem trabalha enquanto o resto do país dorme, mas a terceira temporada da Delta Q ContraCiclo está já pronta e será lançada em breve nas redes sociais.