Não há nada como recuperar o exemplo de Tao Geoghegan Hart no Giro de 2020 para ter sempre a noção de que numa grande volta tudo pode mudar num ápice: à entrada para a última semana, aquela em que João Almeida deixou de ter a camisola rosa com que andou durante quase 15 dias, o britânico nem estava no top 10 com quase quatro minutos de atraso para a liderança, o cenário começou a mudar na subida ao Stelvio e o contrarrelógio em Milão serviu apenas para confirmar mais uma grande vitória da Ineos. Agora, tudo é diferente. O traçado, com muito mais montanha na última semana. A concorrência, com mais nomes na luta pelo top 3. O próprio desgaste, doseado pelos principais candidatos. Mas há uma coisa que se ainda é igual e não vai mudar nos próximos tempos: a imprevisibilidade. E este ano é um bom exemplo.

Um marcar de posição após o descalabro no Blockhaus: Ciccone vence em Cogne, Rui Costa anda na frente e Almeida mantém 3.º lugar no Giro

Da queda de Caleb Ewan na última curva da primeira etapa que pareceu deixar o australiano sem aquelas condições para ir buscar pelo menos uma vitória à lesão de Biniam Girmay com a rolha do champanhe uns momentos depois de ter feito história ao tornar-se o primeiro africano negro a ganhar uma tirada numa grande volta, passando pelos mais de 11 minutos que Simon Yates cedeu no Blockhaus antes de ganhar com uma demonstração de força em Turim (como aconteceria também com Ciccone em Cogne) ou pela forma como Richard Carapaz conseguiu ir ganhando uns segundos em bonificações ou chegadas com pequenos cortes nos últimos metros, aconteceu de tudo um pouco em duas semanas de Volta a Itália. No meio de tudo isto, João Almeida “aguentou-se”. Com um dia fantástico no Blockhaus mesmo não partindo nas melhores condições, com uma etapa mais complicada até Turim pelo tempo que perdeu nas descidas. Contas feitas, estava em terceiro, quase com a mesma distância da frente do que em relação ao quarto.

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A melhor etapa do Giro trouxe mexidas: Yates vence em Turim, Carapaz fica com a rosa, João Almeida ainda em 3.º

“O circuito de Turim foi uma grande confusão, com grandes gaps. Estou quase feliz por só ter perdido 30 segundos na classificação geral. Em Cogne foi uma etapa difícil por ter mais montanha mas no final não houve diferenças. Acredito que estou na posição perfeita, a 30 segundos do Richard [Carapaz]. As coisas têm corrido muito bem, na minha opinião. Vamos para a terceira semana na tentativa de não perder mais tempo, aguentar com os melhores corredores e ver o que eles são capazes de fazer”, comentou o português numa espécie de balanço das duas primeiras semanas que tiveram esta segunda-feira o último dia de descanso com a equipa da UAE Emirates a disponibilizar um helicóptero para que os seus corredores tivessem um pouco menos de desgaste na viagem de mais de 350 quilómetros entre Cogne e Salò.

Um dia épico de afirmação: João Almeida resiste a todos os ataques no Blockhaus, acaba em quinto e sobe a segundo do Giro

“O Jai [Hinley] está forte e o Carapaz veste de rosa, também está forte, mas acredito que o [Mikel] Landa pode ter também uma palavra a dizer. Só está a um minuto do Richard [Carapaz] na geral e por isso acho que a Bahrain vai querer fazer algo esta terça-feira. Devido a essa distância, talvez a Ineos lhes dê algum espaço, pode ser enganador. A etapa tem subidas duras mas vai ser muito técnica e vai partir os grupos, até mais nas descidas do que nas subidas. Ainda é longe da meta mas é tudo a subir e descer. No final, é igual para todos. Talvez a Bora tente algo, a Ineos talvez não arrisque tanto. Não costumam arriscar nas descidas ao contrário do Nibali. Pode haver surpresas. Hoje sinto-me bem, amanhã não sei. Ainda há dias muito complicados, sobretudo antes do contrarrelógio. A etapa rainha vai ser no sábado. Se me sentir bem, vou tentar algo nos próximos dias, claro”, acrescentou ainda o corredor de A-dos-Francos.

De Carapaz a Landa, todos faziam a mesma análise de João Almeida. À etapa, às possibilidades de cada um (colocando sempre o português como um candidato à vitória embora o elemento da UAE Emirates tenha sempre apontado só ao top 3), à parte mais tática da ligação a Aprica com mais de 200 quilómetros que passava pelo Coletto di Cadino, pelo mítico Passo del Mortirolo e por Valico di Santa Cristina antes de acabar com mais uma descida e uma pequena subida (as outras três eram de primeira categoria). E, dentro dessa análise, falavam também da importância das equipas. Se João Almeida iria ter um verdadeiro teste à capacidade de fazer um top 3 numa grande volta numa etapa que não era propriamente à medida das suas características, a UAE Emirates iria ter um dia para mostrar o que vale com estas escolhas.

Mathieu Van der Poel quis ser o primeiro protagonista do dia na fuga ainda longe da primeira subida do dia de Coletto di Cadino e ficou depois com a companhia de Nans Peters, Pascal Eenkhoorn, Thomas de Gendt, Mark Cavendish e Christopher Juul-Jensen. No entanto, antes dessas decisões, outros pesos pesados foram começando a chegar, criando um grupo com 22 elementos onde entraram também Sylvain Moniquet, Filippo Zana, Simon Yates, Guillaume Martin, Natnael Tesfazion, Dario Cataldo, Giulio Ciccone, Lennard Kämna, Wilco Kelderman, Lorenzo Fortunato, Alejandro Valverde, Thymen Arensman, Hugh Carthy, Mauri Vansevenant, Jan Hirt, Lorenzo Rota, Davide Formolo e Wout Poels, sendo que Natnael Tesfatsion (Drone Hopper) acabou não só por sair do grupo mas também do próprio Giro deste ano.

O grupo teria depois a sua seleção quase natural, com Giulio Ciccone a ser o mais forte Coletto di Cadino e Koen Bouwman a somar mais 18 pontos para a classificação da montanha numa liderança onde estavam ainda Poels, Martin, Kämna, Kelderman, Hugh Carthy, Valverde, Simon Yates, Arensman ou Formolo, com mais de 30 segundos sobre os perseguidores e cerca de 2.20 minutos do pelotão quando já se começava a pensar na subida a Mortirolo. João Almeida, escudado por três elementos da UAE Emirates, seguia ainda no pelotão onde estavam os primeiros classificados todos do top 10 a não ser Martin, que ia na fuga. Primeiras impressões? A Bora era a equipa que se colocava em melhor posição para atacar, a Ineos era a única que não colocava ninguém na fuga, a UAE Emirates lançava Formolo mas protegia o seu chefe de fila, o pelotão não podia facilitar muito porque entre o top 10 e o top 20 entraram quase todos na fuga.

Na antecâmara da segunda subida de primeira categoria, o grupo tinha ficado resumido a oito unidades (Alejandro Valverde, Thymen Arensman, Lennard Kämna, Koen Bouwman, Lorenzo Rota, Chris Hamilton, Wout Poels e Dario Cataldo), com os perseguidores a 40/50 segundos e o pelotão já quase a cinco minutos. E o grupo da liderança foi ficando ainda mais reduzido, com Cataldo a cair supostamente para ajudar Ciccone mas mostrando que já tinha dado tudo e Rota a baixar também até ao grupo intermédio. Lá atrás, uma mudança em relação a quem liderava o pelotão com a Astana a passar para a frente da Ineos para endurecer a corrida e colocar a etapa mais ao jeito de Vincenzo Nibali com o pelotão a 5.15 dos líderes.

Hugh Carthy e Jan Hirt conseguiram ainda colar ao grupo da frente ao contrário de Ciccone, que depois do brilharete de domingo não teve forças para voltar a lutar pelos pontos com Bouwman. No entanto, e mais atrás, João Almeida registava a pior notícia possível a 75 quilómetros do final: Diego Ulissi descolou do pelotão com o “esticar” da Astana (mais tarde voltaria a colar de novo, cedendo de vez a 30 quilómetros da meta) e o português passava a ficar sozinho no meio do pelotão, tendo apenas mais à frente Formolo que se fosse necessário ficava para trás para “rebocar” o seu chefe de fila. Pouco depois chegou a primeira “fatura”: o pelotão teve mais um corte e enquanto a Astana, a Bahrain, a Ineos e a Bora seguiam descansados na frente, João Almeida teve de forçar para fechar o espaço e agarrar lugar. Lá na frente, Bouwman confirmou a passagem no primeiro lugar em nova contagem com pontos e voltou a liderar a camisola da montanha.

A UAE Emirates leu bem depois a corrida, deixando cair Davide Formolo para ajudar João Almeida (algo que também não demorou muito, com o português a ficar de novo sozinho) num grupo onde estavam entre os primeiros e respetivas equipas Richard Carapaz, Jhonatan Narváez, Pavel Sivakov, Vincenzo Nibali, Joe Dombrowski, Vadim Pronskiy, Mikel Landa, Pello Bilbao, Santiago Buitrago, Domen Novak, Emanuel Buchmann, Jai Hindley, Lucas Hamilton e Juan Pedro López. No entanto, tudo estava preparado para Nibali aproveitar a descida após Mortirolo, ganhando uma vantagem confortável por não ter ninguém que fosse capaz de seguir no ritmo que imprimiu. Já Pozzovivo, que devido a uma queda ficou a mais de um minuto, conseguiu voltar a colar com muito esforço à mistura que não esperava naquela fase.

A Bahrain passava a assumir o pelotão a trabalhar para Mikel Landa, tendo em conta os cinco quilómetros a 10% que se avizinhavam, com esse grupo onde seguiam os primeiros classificados a reduzir para pouco mais de três minutos a desvantagem para os fugitivos numa etapa muito partida e que a 20 quilómetros do final teve Kämna a aproveitar uma descida para ganhar alguma margem de Carthy, Jan Hirt, Valverde e Thymen Arensman e ficar com 50 segundos de vantagem. Estava à vista o Valico di Santa Cristina, a última subida do dia antes da descida de seis quilómetros para a meta, e com o pelotão a cerca de dois minutos e meio do grupo perseguidor do alemão da Bora que não cedia na frente da corrida até Thymen Arensman descolar na perseguição. No grupos dos primeiros, e depois de Juanpe López, Buchamnn cedeu.

Mais uma vez, a imagem do costume que tinha tanto de bom como de “preocupante” para João Almeida: a Bahrain na frente, a Ineos a controlar, a Bora a proteger Hindley e o português na cauda do grupo ao pé de Nibali. Foi assim que andou no Blockhaus com sucesso, foi assim que seguiu perdendo depois tempo na descida em Turim. E foi quando tentou chegar mais à frente passando de lado que teve um outro susto quando Pello Bilbao teve uma queda sem consequências mas o português foi a tempo de colocar o pé no chão e evitar a queda antes do esperado ataque de Landa que levou Carapaz e Hindley e deixou João Almeida para trás, a tentar colar em Nibali para minimizar as perdas sobretudo para o espanhol.

Kämna tinha feito mal as contas, com Arensman e Jan Hirt a chegarem ao alemão e a deixarem-no com relativa facilidade para trás. Lá atrás, já a apenas 1.35 minutos, João Almeida estava à beira de colar de novo quando primeiro Hindley e depois Carapaz voltaram também a atacar. Que era ele sozinho, já se sabia; que era ele contra três como já tinha acontecido no Blockhaus (nesse caso com Carapaz, Landa e Bardet, que entretanto desistiu), já se esperava. Que ele aguentava, voltou a confirmar-se. E a distância continuava apenas entre os cinco e os 15 segundos, dependendo de quem atacava e com maiores danos quando Hindley marcava o ritmo, que em mais um “safanão” passou para 20 segundos. A luta pela etapa estava entregue a Jan Hirt, o centro das atenções já passara para a luta entre os quatro primeiros.

Arensman ainda conseguiu uma grande recuperação mas o checo já não deixou fugir a etapa, com o grupo de Carapaz, Hindley, Landa e Valverde a chegar de seguida com 14 segundos de avanço de João Almeida. Na prática, e olhando para uma classificação que fez o corte a quatro grandes candidatos ao top 3, foi de facto o português a perder. No entanto, com uma Ineos que continua a deixar Carapaz na sua zona de conforto, uma Bora que com outra tática podia ter conseguido dar a volta na rosa com Hindley a fugir e uma Bahrain que atacou com tudo na parte final para preparar a subida de Landa, foram 14 segundos. Não por controlo, não por tática mas por incapacidade de cravar uma maior distância frente a um tanque de resistência que voltou a minimizar estragos para a equipa e para o próprio com um oitavo lugar.

Contas feitas, Carapaz manteve a camisola rosa mas agora com apenas três segundos de avanço sobre Jai Hindley, que ao acabar na terceira posição foi buscar a bonificação. João Almeida ficou a 44 segundos do equatoriano e com uma vantagem de 15 segundos sobre Mikel Landa, quarto a 59 segundos da liderança. Vincenzo Nibali passou para a quinta posição já a 3.40 minutos de Carapaz. Ainda no top 10, que deixou de contar com Juanpe López pela primeira vez desde que passou a andar de rosa, ficaram Domenico Pozzovivo (3.48), Pello Bilbao (3.51), Buchmann (4.45), Jan Hirt (7.42) e Alejandro Valverde (9.04).