Uma exposição que pode servir, entre outras coisas, para que “o que se está a passar na Ucrânia — que não acabou — não caia no esquecimento“. É este um dos intuitos de “75 dias na Ucrânia”, uma mostra que poderá ser vista de este sábado, 16 de julho, até ao dia 16 de outubro, na antiga lota de Portimão.

A exposição é da autoria do fotojornalista do Observador, João Porfírio, que passou mais de dois meses em reportagem em território ucraniano, ao longo da guerra provocada pela invasão russa. No espaço, poderão ser vistas fotografias (sobretudo) mas também vídeos captados pelo repórter em várias cidades ucranianas, como Kiev, Bucha, Irpin, Borodianka, Zaporíjia, Hostomel, Kharkiv, Mikolaiv, Odessa e Lviv.

Além das imagens — um total de 26 fotografias selecionadas a partir do trabalho de João Porfírio —, a exposição “75 dias na Ucrânia” inclui objetos recolhidos em território ucraniano e trazidos para Portugal para exposição e uma instalação que pretende recriar o cenário de um bunker, divisão onde as populações locais se protegiam de possíveis bombardeamentos russos. Outro dos elementos expositivos que será exibido é uma réplica de um carro civil baleado no qual seguia uma família ucraniana que fugia de Irpin. Os tiros disparados contra aquele carro levaram à morte do condutor e pai da família.

Além de material fotográfico e audiovisual, e da instalação que simula um bunker, a exposição terá ainda som: percorrendo os núcleos expositivos de “75 dias na Ucrânia”, os visitantes serão confrontados com música selecionada pelo maestro português Martim Sousa Tavares, fundador da Orquestra Sem Fronteiras. Os temas serão regularmente interrompidos por um dos sons mais recorrentemente ouvidos em território ucraniano ao longo dos últimos meses: o das sirenes de emergência que alertam para possíveis (iminentes) bombardeamentos russos.

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A exposição tem a curadoria do fotojornalista premiado Mário Cruz, vencedor de dois prémios World Press Photo, e do seu projeto fotográfico Narrativa. Ao Observador, o curador quis vincar que a exposição vai mostrar “pormenores e detalhes que nos foram passando ao lado, na rotina diária dos telejornais e mesmo da imprensa escrita”.

Foi um trabalho de ponderação, um pouco exaustivo. Tivemos de ver o arquivo todo de este período, 75 dias de arquivo. Penso que os visitantes vão surpreender-se com o nível de destruição da Ucrânia, o impacto da guerra em edifícios civis como hospitais, bibliotecas, escolas, espaços de cultura”, indicou Mário Cruz.

Lembrando que o fotojornalista “esteve muito tempo” em território ucraniano, tendo chegado ao país ainda numa fase inicial da guerra provocada pela invasão russa, Mário Cruz garante que “se por um lado pode existir uma ou outra fotografia que ficou na memória, há muitas outras que estou certo que as pessoas não tiveram sequer tempo ou oportunidade de ver, muito menos com atenção”.

O curador da exposição alerta também para a importância do fotojornalismo e do jornalismo na cobertura de cenários de conflito, explicando como este se pode transpor para uma exposição destas: “Tivemos todos acesso a muitas imagens do que se está a passar na Ucrânia. Tudo isso conta na altura de fazer a curadoria da exposição: interfere na escolha do material, na sequência com que este é apresentado, na forma como se procura apresentar uma narrativa visual relativamente a algo de que já temos uma memória visual muito grande — mas uma memória visual alimentada com informação que muitas vezes não é filtrada”.

[Três fotografias que vão poder ser vistas em “75 dias na Ucrânia”, destacadas e comentadas pelo curador da exposição:]

3 fotos

Insistindo que “o que vamos ver é algo que não terminou”, por mais que “a atenção mediática que existiu durante muito tempo acabe inevitavelmente por ir-se perdendo” — lembra até que “estamos a passar pelo flagelo dos incêndios em Portugal e, face a isso, a Ucrânia não tem a mesma importância e destaque nas nossas vidas, mas tudo aquilo continua” —, Mário Cruz nota que esta é a primeira exposição a acontecer na agora requalificada antiga lota de Portimão, o que também traz desafios:

Como é a primeira exposição naquele espaço, não há referência de mostras passadas. Tudo foi feito e pensado de raiz, da iluminação às construções e instalações.”

Enquanto curador, Mário Cruz vinca como a experiência de percorrer a exposição poderá ser absorvida de forma paradoxal: “Nesta altura do ano, milhares de pessoas passam diariamente naquele local. Isso vai permitir criar um impacto na pessoa que está nas suas férias, no seu momento de lazer, a aproveitar o tempo livre, e é confrontada com uma realidade muito forte, muito dramática e muito próxima de nós. É uma viagem que não vai ser agradável, mas é absolutamente necessário que seja feita”.

Outra das promessas deixadas pelo curador é de que esta não será uma exposição fotográfica na sua conceção mais tradicional. Questionado sobre se houve um esforço para tentar recriar o ambiente imagético e sonoro vivido pelo autor da exposição em território ucraniano, Mário Cruz destacou: “A questão sensorial é extremamente importante, mesmo numa exposição fotográfica. Não será apenas uma mostra com fotografias expostas em paredes, essa é apenas uma das partes”.

75 dias na Ucrânia

Uma exposição para “defender a vida, a liberdade e a democracia”

Na sua origem, a exposição resulta de um desafio lançado pela Câmara Municipal de Portimão. Questionada pelo Observador, a autarca da cidade, Isilda Gomes, explicou o que levou a autarquia a avançar para o projeto: “O João Porfírio é um jornalista de quem gostamos muito, da nossa terra. É portimonense. Ficou-nos na retina numa altura em que houve incêndios em Portimão — fez um trabalho fotográfico excelente nessa altura. Temos acompanhado o trabalho e, percebendo que esteve tanto tempo em reportagem na Ucrânia, achámos que fazia sentido”.

O facto do conflito acompanhado pelo fotojornalista ao longo de mais de dois meses ter tido tanta atenção mediática e política, originando uma onda de solidariedade, foi outro dos fatores que levou à exposição, explica a autarca: “Mostrar o que é a dificuldade, o que é a guerra e o que é a morte é importante para valorizarmos aquilo que temos, para que saibamos defender a vida, a liberdade e a democracia“.

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Isilda Gomes explica que a antiga lota de Portimão, agora requalificada e que irá receber a sua primeira exposição, é “um espaço icónico” da cidade, “que toda a gente conhece” mas que, localizado na “zona ribeirinha”, esteve “abandonado durante anos”. Por ali passam, durante o verão, “milhares de pessoas”, é “onde as famílias vão passear à noite”. A ideia é que a antiga lota venha a acolher mais exposições, mas “nada melhor para começar do que com esta, que serve também como um apelo à paz”.

Queremos que as pessoas, olhando para aquelas fotografias, refutem tudo o que é a guerra e apreciem e valorizem a paz que temos. Portugal é um dos países europeus mais envolvidos na luta para que a paz na Ucrânia seja uma realidade, portanto ficamos contentes por sermos os primeiros a acolher esta exposição”, referiu.

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