Com uma pontualidade pouco comum entre nós, e num registo monográfico sem especial tradição no país, o fotojornalista Alfredo Cunha (1953-) tem dedicado a sua atenção à vida contemporânea de algumas cidades portuguesas, como se procurasse medir e inventariar o pulsar coletivo de cada uma delas através de uma série consistente, simultânea e contrastiva levada a público em exposições nos municípios respetivos e complementada em outros tantos livros, todos eles publicados pela Tinta da China. Amadora 1970-2020: a cidade que não existia abrange um arco temporal bastante maior do que Porto: a cidade das pontes 2001-2021 e do acabado de imprimir Rua do Anjo: Braga 1996-2021, o que pode ser justificado pelo facto de Cunha ter vivido ali, perto da Ribeira da Falagueira, e o choque com esse entorno de bairros muito pobres ter sido determinante para a “fotografia humanista” que desde jovem decidiu fazer.

Esse recuo temporal, visto em confronto com o dos álbuns mais recentes, também nos dá uma clara noção — e na obra de um mesmo artista — de quanto neste meio século o país saiu duma miséria suburbana com traços de ruralidade para a ilusão dos pobres pelo consumo (veja-se a sequência das pp. 84-87, mostrando no Bairro da Venteira o casebre de tábuas de 1975 e os jovens com roupa de marca encostados a uma parede grafitada na escola secundária local em 2020). A pandemia de Covid-19 também está em força no livro sobre a Amadora, mas é omitida — num desequilíbrio sem razão aparente — no do Porto e no de Braga, onde não comparecem máscaras, hospitais e cemitérios (máscaras, no do Porto apenas na foto final, pp. 240-41; e no de Braga, também muito no fim e subtilmente, pp. 249, 263). Em nenhum deles — compreensivelmente no da Amadora… — a avalanche de turistas estrangeiros interessou o registo urbano de Alfredo Cunha, ainda que nos anos em apreço ela tenha sido avassaladora no Porto, atingindo também Braga. Presente, em contrapartida, está o interesse do fotógrafo por estaleiros industriais e pela maquinaria pesada (v. pp. 102-3, 104-5, 107-11, 114, 132-33) que já lhe conhecíamos desde o álbum dedicado a Leixões, com textos de Mário Soares e de Teresa Siza (Porto de Mar, Lisboa, Contexto, 1997).


Título: “Rua do Anjo: Braga 1996-2021”
Autor: Alfredo Cunha
Apresentação: Felisberta Lopes
Editor: Tinta da China
Páginas: 254

A diacronia temática destes álbuns faz justiça à principal característica dos lugares fotografados. Se na Amadora a precedência vai para a rudeza dos bairros abarracados, lamacentos e sujos, e no Porto aponta para o Douro como eixo da vida urbana, já em Braga a religiosidade abre o portefólio de Alfredo Cunha, que todavia se mantém sempre à porta das igrejas (exceção feita nas pp. 48 e 50) e de costas viradas para o santuário do Bom Jesus do Monte, tendo procissões e romarias, diurnas e noturnas, como manifestações de forte e incontestável aceitação popular. A chuva como elemento urbano distintivo da capital minhota está presente, se as contei bem, em 24 destas fotografias. O pequeno comércio mais ou menos decadente, no centro da cidade velha, contrasta com as grandes superfícies comerciais do arrabalde, verdadeiros templos do consumo contemporâneo, também eles igualmente vistos de fora (Nova Arcada Shopping, pp. 232-33; Braga Parque Shopping, pp. 229, 226-27; Edifício Primavera, p. 228), que vieram modificar a geografia urbana duma cidade que foi romana e medieval.

Alfredo Cunha toma o pulso a Braga entre tradição e inovação, sem esquecer a Universidade e os novos equipamentos desportivos — muito belas as imagens da Piscina da Rodovia (pp. 170-71 a 174), a do Centro Hípico (p. 248) e as do Estádio Municipal (pp. 164-65, 168-69), escapando bem à previsibilidade do lugar-comum. Sagrado e profano convivem na cidade dos arcebispos, da Semana Santa ao Enterro da Gata e ao Theatro Circo e os seus Artistas do Burlesco, em desvarios atrevidos e exibicionistas na Praça da República e em frente à Sé, como na pp. 148-49 e 153 (fotografias de 2007), enquanto a Escola de Dança do Pópulo mantém velhos reportórios musicais. Quem sabe se convocando a conhecida fotografia de Beatriz Costa diante de loja da Dior em Paris, o fotógrafo surprendeu uma freira bracarense caminhando na Rua do Souto diante de uma montra tapada e com o dístico “Promoções” (p. 187)…

“Todas as fotografias são verdadeiras. Nenhuma delas é a verdade”. A frase do norte-americano Richard Avedon (1923-2004), que aparece na abertura de alguns dos livros de Alfredo Cunha acima referidos, é um aviso prudente, abrindo ainda para a consciência de que a escolha do portefólio apresentado e a narrativa construída pela sequência das imagens são suscetíveis de reavaliação, preferindo o artista não se explicar escrevendo algumas linhas sobre o seu trabalho. Talvez não o faça por lhe faltar a facilidade dum Manuel Valente Alves, mas talvez também entenda que deve deixar o mais possível aberto ao futuro o retrato em movimento duma cidade muito antiga, território humanizado em constante renovação. Vinte e seis anos de imagens é, afinal, bem pouco para tão vetusta idade…

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