Lembro-me da primeira vez que o li, embora não me lembre bem da primeira vez que o vi. Deve ter sido numa ida à livraria, num passeio que era mais pergunta do que resposta, sem saber o que ia meter nas mãos. Como noutras vezes, o braço esticou-se, pegou numa capa preta. E saí dali com a edição brasileira de Os Enamoramentos.

Na altura, que não vai assim há muito tempo, não sabia que pegava num monumento nem que lia pela primeira vez o escritor que, pouco depois, viria a ser para mim o maior entre os vivos. Javier Marías morreu este domingo, 11 de setembro, tinha 70 anos, e a obra que deixou para trás vai sobreviver-lhe de certeza. Como poucos, soube pôr na escrita o maior abalo emocional. Muito lhe devo: como leitora, fui desafiada; como escritora, também.

Nesse primeiro dia entre nós, levei o livro para o café. De rajada e caneta na mão, a sublinhar com fúria, mas num estado de encantamento que mais parecia vício, li o primeiro capítulo. Quis continuar na mesma fúria sedenta, mas o coração falou alto e fiz uma pausa de meia hora só para me recompor. Se é preciso palato para Javier Marías, também é preciso ter estômago e boas artérias coronárias. Fui para casa, abri o livro, meti a cabeça lá dentro. Fiquei durante dias com tudo a andar à roda – o cérebro estava em papa, o coração em bocados. Não me lembro se foi logo nesse dia que apanhei uma tendência quase sádica do autor, ou se isso só foi formulando a sério depois de ler mais dois ou três livros. Hoje, sei que não é possível lê-lo em descanso no sofá. Há sempre um dilema moral a quebrar os dias, a provocar o sismo, a viciar na intensidade.

Todos os anos a partir daí – corria 2015 e eu estava em Florianópolis –, quis que o homem, que fora de Espanha ao sul do Brasil, chegasse à Suécia. Como nenhum dos meus amigos o tinha lido ainda, eu sentia que tinha ali um segredo bem guardado. Mas, tal como em personagens de Marías, eu queria ver o que acontecia quando se cometia a imprudência de se levar um segredo ao lugar X. E, todos os anos a partir daí, li isto ou aquilo, li aquilo e isto, procurei a assinatura dele. Sempre que abri um livro, tive pressa. Se adiei uma leitura, foi só por não me apetecer levar porrada.

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Javier Marías: o virtuoso manipulador de leitores

Para mim, Javier Marías fala em português do Brasil. Cheguei a lê-lo em português europeu, cheguei a lê-lo no original, mas aquela fúria cantada que senti de cabeça raptada pelo papel numa esplanada quando uma lagoa azul se estendia à frente, quando as montanhas verdes se erguiam ao longe, pareceu marcar para sempre o trabalho de linguagem. Esse trabalho de linguagem, é bom de ver, não apenas é reconhecível como parece não ter par. Eu, que em geral nem acho graça ao tom que explora o detalhe, dei por mim a comer páginas às pazadas para ver se atingia o todo orgânico. E, mesmo sem nunca deixar de fazer do leitor um agente activo – antes pelo contrário –, Marías apresentou sempre versões calibradas. Parecia que o objectivo era explorar uma possibilidade ao máximo e blindá-la. E, para o leitor, o objectivo era ver tudo, entender tudo, não deixar escapar nenhum detalhe e muito menos nenhum ângulo. Em Marías, o tudo – deixem-me fazer de tudo um substantivo – jorrava sempre em catadupa.

Entre os meus eleitos, Marías foi e é o mais desconcertante. Apanha o leitor à cabeça e depois cria uma estranheza que depressa se torna familiar. Os dilemas morais são de tal forma escrutinados e postos em perspetiva que até o leitor fica na corda bamba, já indefeso, a justificar o que lhe vier à mão, a receber uma história em que a filosofia e a moral não são matéria dada, mas substrato de um texto. De repente, discute-se o mais fundo da vida partindo-se de uma só imagem. Faz-se tudo isto em pleno voo de vertigem.

De Amanhã na batalha pensa em mim (1994) a O teu rosto amanhã (2002-2007) ou a Assim começa o mal (2014), Javier Marías parecia Ricardo Reis, pondo quanto era em tudo o que fazia. A exigência é máxima, o impacto também. E, tendo um estilo reconhecível, um impacto que só pode ser Javier Marías, o autor nunca caiu numa composição formulaica e nunca evitou deixar a sua marca de inquietação, mesmo sem recorrer à repetição. Fosse conto ou romance, o que tinha a sua assinatura trazia diversidade e surpresa. Em vez de um autor, um mundo inteiro.

Em plena diversidade, há um elemento que não falha: há sempre uma sombra, há sempre um desconforto. Um cenário idílico leva com o tormento da efemeridade. Um amor louco mostra que realmente é louco. Um crime imperdoável nasce por um bem maior. Uma adoração vai de arcabouço cardíaco a perigo iminente. Em tudo, transparece a essência da vida. Em contos ou em romances, não há só hipóteses de situações, mas confrontos morais permanentes, daí que não haja momento em que não se sinta a angústia de uma decisão.

O pobre do leitor tenta levar com mil pancadas dadas ao mesmo tempo, tentando formular uma hipótese enquanto é engolido pelo drama das personagens. Pelo menos, foi sempre assim que me senti sempre que peguei num livro de Javier Marías: sentada, mas pronta para levar um enxovalho; deitada, mas pronta para ser tombada. Apesar disso, dava para pensar em Marías como um amigo que existia ao longe. Como um amigo, também ele abria os olhos, também ele era descoberta. E isto apesar do seu quê de sadismo, da sensação de veneno que a leitura podia deixar.

Pegar num livro novo era sempre uma grande alegria. E havia sempre a admiração de uma leitora, que toda a gente sabe que é o amor mais puro, por ver romances que eram monumentos, por ver contos que eram estímulos intelectuais, pelo respeito que Javier Marías provava ao dar a quem o lia (e a quem o lê) qualidade e desafio.

A autora não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico