Vivemos cada vez mais anos. No último século a esperança média de vida nos países desenvolvidos duplicou. Mas esta é uma benesse que não vem sem consequências. O aumento do tempo que vivemos significa que temos cada vez mais doenças associadas ao envelhecimento: cancro, problemas cardiovasculares, doenças neurodegenerativas.

E não envelhecemos através da mera passagem do tempo. O que realmente nos torna velhos é a perda da capacidade de correção de erros e de regeneração que esse tempo implica. “As células vão acumulando erros que levam a uma perda de função e capacidade regenerativa dos tecidos, em parte porque as células estaminais perdem capacidade multiplicativa para formarem novas células saudáveis, que consigam manter a fisiologia intacta”, explica Cláudio Franco, do Católica Biomedical Research Centre (CBR). Esse processo traz como consequência a deterioração das funções dos vários órgãos e, inevitavelmente, as doenças.

Como somos um sistema complexo, isso leva a que se acumulem cada vez mais erros e mais imperfeições que conduzem ao envelhecimento.”

Há muito por saber sobre o envelhecimento, mas talvez uma das dúvidas mais peculiares seja esta: é um processo normal ou anormal? “A verdade é que não sabemos se fomos programados para envelhecer. Se é algo desejado ou é uma consequência indesejada do processo evolutivo, que ainda não está aperfeiçoado.” Essa dúvida faz com que seja impossível não reparar numa curiosa ironia do envelhecimento: é a incapacidade de renovação das células que, paradoxalmente, permite a renovação da população. Se as células tivessem uma capacidade infinita de se renovar, perderia a espécie essa capacidade, ao manter sempre a mesma população.

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Claúdio Franco trabalha há quase duas décadas nos mecanismos moleculares que regulam o comportamento das células endoteliais, “aquelas que estão no interior dos vasos sanguíneos e fazem a interface entre o sangue e os tecidos”

Foi um acaso que trouxe Cláudio Franco ao estudo do envelhecimento. O investigador começou por se licenciar em Bioquímica na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, em 2004, embora hoje sinta alguma pena dessa escolha. Já sabia que queria ser investigador e achou que a bioquímica seria a melhor opção. “Hoje teria escolhido o curso de Medicina, para dominar menor a fisiologia do corpo humano. Mas, na altura, havia menos informação e eu achava que Medicina era só para quem queria ser médico.”

Completou depois o doutoramento na Universidade Paris VII em 2008 e, entre 2009 e 2014, fez o pós-doutoramento no London Research Institute. Está desde então no Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), a liderar o grupo de investigação Morfogénese Vascular, mas de malas feitas para partir em breve, já que está em fase de transição para o recém-criado Católica Biomedical Research Centre (CBR), acumulando a investigação com o cargo de vice-diretor da instituição. O projeto “Células endoteliais como reguladoras das doenças relacionadas com a idade”, financiado pela Fundação “la Caixa”, vai ser desenvolvido no CBR e é uma das primeiras incursões do investigador nos mecanismos de envelhecimento.

“A verdade é que não sabemos se fomos programados para envelhecer”, diz o investigador. “Se é algo desejado ou é uma consequência indesejada do processo evolutivo, que ainda não está aperfeiçoado”

Cláudio Franco trabalha há quase duas décadas nos mecanismos moleculares que regulam o comportamento das células endoteliais, “aquelas que estão no interior dos vasos sanguíneos e fazem a interface entre o sangue e os tecidos”, esclarece. Um dia, no laboratório, ao fazer experiências com uma proteína (o factor ABC – abreviado assim por confidencialidade), Ana Figueiredo, membro da equipa de investigação, reportou que, quando a eliminava das células endoteliais, os ratinhos envelheciam prematuramente, desenvolvendo doenças nos rins, cérebro e fígado, típicas de animais mais envelhecidos.

A equipa ficou em alerta, até porque, anos antes, estudos do investigador israelita Eli Keshet já haviam mostrado que, pelo contrário, o aumento de outra proteína importante para os vasos sanguíneos (o factor de crescimento do endotélio vascular – VEGF) permitia prolongar a esperança média de vida dos ratinhos de laboratório e, sobretudo, torná-los mais saudáveis.

“Estar certo é muito gratificante e motivador. Mas estar errado ou ter resultados inesperados também é muito interessante: dá-nos a hipótese de levantar novas questões de investigação”

“Estes elementos, em conjunto, fizeram-nos colocar esta hipótese de que o ABC, na célula endotelial, funciona como um sensor: está exposta ao sangue e comunica informação aos tecidos, regulando o envelhecimento ou a capacidade regenerativa”, diz o investigador. O projeto em curso pretende confirmar esta hipótese e, depois, descobrir quais são os factores que estão acima nesta cadeia, ou seja, “o que é que regula a atividade do ABC e o que é que o ABC faz nas células endoteliais que permite esta comunicação com os tecidos”.

Nem sempre se consegue perceber exatamente qual vai ser o potencial clínico da investigação fundamental, mas neste caso é muito claro. “Se o projeto for muito bem-sucedido, vamos ter um caminho que permite testar moléculas que possam prevenir o aparecimento de doenças associadas ao envelhecimento, para prolongar os anos de vida saudável.” E aqui o investigador faz questão de frisar: não se trata de prolongar os anos de vida, mas os anos de vida sem doenças graves e limitadoras.

As investigadoras Ana Figueiredo, Marta Saraiva, Nadine Conchinha e Lenka Henao fazem parte da equipa de Cláudio Franco. “Se o projeto for bem-sucedido, vamos ter um caminho que permite testar moléculas que possam prevenir o aparecimento de doenças associadas ao envelhecimento, para prolongar os anos de vida saudável”

Cláudio Franco garante que só alguém apaixonado pela ciência persiste sem desmotivar. “O contexto atual de financiamento e dos tipos de contratos não são favoráveis”, garante. Depois, há um lado ingrato: “o meio é competitivo e ‘the winner takes it all’ [o vencedor fica com tudo]. Em projetos com potencial translacional, isso significa que o primeiro a submeter a patente é quem tem os direitos comerciais”, explica o investigador. Apesar disso, garante que prefere manter uma perspetiva de cooperação em vez de competição. “É importante criar e integrar comunidades científicas para poder partilhar dados livremente”, defende. Isso tem a vantagem de criar um ambiente mais saudável, mas também de permitir que se avance mais depressa num processo que é sempre demorado.

Ao investigador, o que o cativa, duas décadas depois de começar, são aqueles dias em que, depois de dois ou três anos de trabalho, pode ir ao microscópio para ter uma resposta à derradeira pergunta: “Estou certo ou estou errado?” E há prazer em ambas as respostas. “Estar certo é muito gratificante e motivador. Mas estar errado ou ter resultados inesperados também é muito interessante: dá-nos a hipótese de levantar novas questões de investigação.” Como naquele dia em que, ao experimentar retirar uma proteína das células endoteliais viu ratinhos a envelhecer demasiado depressa e se perguntou: “Porque é que isto aconteceu?”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Células Endoteliais como Reguladoras das Doenças Relacionadas com a Idade, liderado por Cláudio Franco, do CBR, foi um dos 33 selecionados (13 em Portugal) – entre 546 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do Concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde. O investigador recebeu 500 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2022 encerram a 15 de novembro.