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Clarice Lispector: todas as cartas de uma vida errante

Este artigo tem mais de 1 ano

Não foi apenas escritora genial de romances e crónicas, foi também escritora de muitas cartas cheias de espontaneidade, humor, ansiedade. São mais de 600 páginas para conhecer a outra face de Clarice.

Clarice Lispector, em 1941, antes de deixar o Brasil durante quase duas décadas
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Clarice Lispector, em 1941, antes de deixar o Brasil durante quase duas décadas

Clarice Lispector, em 1941, antes de deixar o Brasil durante quase duas décadas

“(…) uma pessoa só pode apenas sucumbir. Foi isso que eu que fiz chorando no cinema e aliviando uma mágoa confusa. O início disto tudo foi uma carta de vocês que eu botei junto do coração para sentir o calor dela e dormi assim e mesmo agora, sentada junto do lago, tenho a carta na mesma posição (…) por enquanto, vou ao cinema e as cartas de vocês vão dentro do sutien (desculpem), porque assim sinto o calor da amizade de vocês… É muito bom (…)”

Este fragmento de uma extraordinária carta que Clarice Lispector escreve às irmãs Tânia e Elisa, a partir do lago Léman, na Suíça, em 1946, em todo o seu desespero e solidão, dá-nos a tónica do que foi a vida desta mulher que deveio mito, enigma, a escritora genial. Uma mulher de personalidade forte que precisava com constância e urgência de se sentir amada e ligada à família e aos amigos que deixou no Brasil, em 1944, quando partiu para Nápoles para se encontrar com Maury Gurgel Valente, o marido diplomata, e onde só regressa de vez, em 1959, depois do final do casamento.

Clarice Lispector, Todas as Cartas acaba de ser publicado pela Relógio d’Água e reúne mais de 600 missivas escritas pela autora, entre 1940 e 1977 (ano da sua morte) às irmãs, aos amigos escritores e não escritores, a críticos literários, a editoras e até ao Presidente do Brasil, Getúlio Vargas. É um documento valioso para estudiosos, mas, como qualquer escrita íntima, é um livro que devemos abordar mais com o coração do que com o desejo voyeurista de ver obscenamente os detalhes da vida alheia.

Há nestas cartas a espontaneidade — e mesmo a ingenuidade — de quem não escrevia para a posteridade e não tinha qualquer espécie de filtros, muito pelo contrário. Certamente, Clarice Lispector nunca imaginou que o mundo fosse, um dia, querer ler as suas cartas, tão cheias de fragilidades, medos, alegrias breves, humor corrosivo, crises conjugais, enfastiamento pela vida social de mulher de um diplomata, festas e eventos sociais que, em geral, ela detestava. Certamente saber-se assim tão nua iria deixá-la horrorizada, mas como poderia ela adivinhar que a vida íntima dos famosos iria dar muito lucro?

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Brinco toda secreta de deixar que pensem o que quiserem. Como não tenho remorsos de ser uma desfalcada, estou pura para sentir o gosto do logro. É que também é muito bom enganar, conquanto a pessoa não se engane a si mesma.”

[carta a uma amiga]

Porém, por mais exposta que esteja nestas cartas, onde pede desesperadamente às irmãs e aos amigos que lhe escrevam, numa Europa em guerra e quase sem acesso ao telefone, Clarice Lispector pouco mais podia fazer do que esperar por cartas, bilhetes, palavras, notícias de um Brasil que deixou, sem nunca ficar sem um quarto seu para poder escrever, mesmo aflita, solitária, odiando quase todos os lugares onde viveu e por onde passou. E sempre com a carta das irmãs dentro do sutiã para as sentir mais perto. Nunca o seu corpo e a sua existência se prestam a ser desvelados, até porque ela mesma nunca soube bem quem era.

A capa da edição portuguesa de "Todas as Cartas", de Clarice Lispector (Relógio d'Água)

Assim, se neste livro podemos aproximarmo-nos do seu laboratório de escrita, podemos perceber como era insegura em relação ao que escrevia, como foram atribuladas as publicações dos seus livros num Brasil onde ela não vivia, como ela lia, vivia e escrevia sempre de dentro para fora, sempre com o seu caos interior impossível de domar a comandar os seus dias.

Pensar que se pode conhecer Clarice Lispector nestas cartas é uma ideia ingénua. “O que eu desejo ainda não tem nome (…) continuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando círculos de vida, jogando-os para o lado, murchos, cheios de passado (…) ela existia e o que havia dentro dela era movimento erguendo-a sempre em transição (…)”, escreveu em Perto do Coração Selvagem, o seu primeiro livro, composto entre os 19 e os 23 anos. De facto, assim seria. A sua vida seria um movimento constante, um não-lugar, uma terra sem nome como nos seus romances.

Cartas de um coração selvagem

Com Clarice, nunca se tratou de escrever a realidade, “tratava-se sim de uma expressão incontida, o real que transporta dentro de si o silêncio e a desesperação. Como se ela só pudesse ver de dentro para fora. Como o respirar do próprio ser que só a ela pertence, coisa indefinível, compulsão inseparável da alegria que também é dor, infinitude, instável”, escreve no prefácio Carlos Mendes de Sousa, atualmente um dos principais especialistas na obra clariciana.

Ao longo destas cartas, acompanhamo-la desde jovem, ainda a viver com o pai, que morre quando ela tem 20 anos; até à meia idade de uma mulher cuja vida, apesar dos triunfos literários, foi uma sucessão de acontecimentos trágicos, um movimento no escuro. Desde o seu nascimento, na Ucrânia, em fuga dos progroms da Rússia, a chegada ao Brasil, a vida em várias cidades, em várias escolas, a crescer entre o iídiche falado como língua materna, a aprendizagem do hebraico numa escola no Recife até ao seu mergulho na língua portuguesa, a morte da mãe quando ela tinha apenas 10 anos, depois a vida no Rio de Janeiro onde se formou em Direito, até às muitas outras vidas nas cidades onde viveu com o marido e nunca se adaptou. Nada tinha a “bagunça” nem a iridiscência do Brasil em geral e do Rio de Janeiro em particular.

Durante as quase duas décadas que vive fora do Brasil, Clarice tem medo de ser esquecida, de não conseguir publicar, de estar fora daquilo que é para ela o centro do mundo, que lhe alimenta um sentimento continuo de orfandade. Talvez por isso as suas cartas estejam cheias de coisas que não podem ser ditas, de paisagens humanas e naturais que nenhuma palavra pode dar a ver. Mas há também o humor, as muitas pessoas e situações que ela despreza e que escreve usando o diminutivo, como quando conheceu o famoso ator americano Tyrone Power e o designa de “Tyronezinho”, ou quando tenta descrever Berna dizendo: “Berna é uma fazenda, dá vontade de ser vaca leiteira”.

Em agosto de 1944, em trânsito para Nápoles onde vai viver os últimos anos da 2ª Guerra, a escritora passa alguns dias em Lisboa. Na carta que escreve às irmãs mostra-se desapontada com a antiga capital do império, dizendo que não encontrava nela o espírito de cidade. Ao lermos isto, só podemos ficar espantados com o agudo espírito crítico de Clarice: “Cheguei finalmente a Lisboa. Não me agradou. Eu pensava que ia encontrar uma coisa diferente. O Rio é milhões de vezes mais bonito e mais cidade”. Comparada com o Rio de Janeiro, como lhe deve ter parecido pobre e cinzenta essa Lisboa com o “ambiente snob dos salões”. Apesar disso, conhece João Gaspar Simões, que a dará a conhecer ao público português quando escreve uma crónica sobre o terceiro romance de Lispector, A Cidade Sitiada. Também conhece Natércia Freire, com quem terá uma breve correspondência, e Maria Archer.

Clarice Lispector a trabalhar com a máquina de escrever no colo, o que se tornou uma das suas imagens de marca

Viveu em Nápoles, em Berna, em Torquay (na Inglaterra, junto a Dover) e Washington. Só as cidades com a alguma movida, como Paris e Londres, a cativaram, adorava teatros, cinemas, bôites. Apesar disso, está sempre a sonhar em regressar ao Brasil. Numa das cartas às irmãs diz mesmo que pensa nisso todos os dias. Faz planos para regressar, nem que seja por algum tempo, mas a verdade é que fica fora quase duas décadas e a principal relação que mantém com os país (raramente menciona a sua origem judia e eslava) é a da língua portuguesa, aquela que ele fez por estender os limites, abrir brechas, desbravar caminho, como poucos fizeram. E se estilisticamente foi comparada a Virginia Woolf ou a James Joyce, a sua paisagem, a sua fonte está muito mais próxima da sua origem eslava e judia do que pode parecer a quem não conhece os autores daquela região, como Paul Celan, Hermann Broch, Bruno Schulz. Porém, aquilo que eles fizeram em língua alemã, Clarice fez em língua portuguesa, e com uma originalidade que só tem paralelo em Guimarães Rosa (autor que a deslumbrava).

A sua relação com a literatura, os livros de que ela gosta, desde D.W Lawrence a Katherine Mansfield, até romances policiais, é outro dos temas que pode ser encontrado nestas cartas onde ela tantas vezes se mostra desesperada com a sua incapacidade de escrever. Numa carta a Lúcio Cardoso, dirá: “É que eu não sou senão um estado potencial, sentindo que há em mim água fresca, mas sem descobrir onde é a sua fonte”. Já numa carta à irmã Tânia, escrita em 1946, escreve:”Aqui tudo igual. Eu lutando com um livrinho [A Cidade Sitiada] que é horrível. Como tive coragem de publicar os outros dois? Não sei como me perdoar a inconveniência de escrever (…)”.

A escrita era a sua grande obsessão “mais importante que o amor”, escreverá numa das missivas. Sê-lo-á durante toda a vida. Depois do regresso ao Brasil, em 1959, na sequência do seu divórcio, a sua escrita altera-se, mas não as suas angústias, a dificuldade de publicar. A necessidade de trabalhar faz com que escreva crónicas em vários jornais, explorando outro dos seus lados prodigiosos, o texto curto. “A literatura era para ela a própria vida, o modo de se relacionar com a existência (…) ela era uma poeta no sentido mais puro e pleno do termo”, escreveu o poeta brasileiro Ferreira Gullar.

Este volume de cartas de onde se desprende sobretudo uma vontade de diálogo, onde os outros são mais importantes que o “eu”, onde ela diz ter um carinho materno pelo mundo que se sente a própria mãe de Deus, são também fragmentos da história de uma mulher que foi descobrindo que poderia viver sem felicidade e alimentar-se de alegrias breves como uma carta das irmãs. Como nota Carlos Mendes de Sousa, “a leitura destas cartas aproxima-nos ainda do seu extraordinário laboratório de escrita. Permitindo-nos captar alguma coisa desse fulgurante e caótico adensamento que vai ganhando forma de coisa viva, uma literatura em vertigem e permanente indagação”.

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