Foram divergências — profissionais e pessoais — com a coordenadora-geral da comissão que estuda a localização do novo aeroporto que levaram a jurista Mafalda Carmona a bater com a porta. Ao Observador, a também professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa contradiz, assim, Rosário Partidário — que, um dia antes, indicou que a saída se deu por falta de tempo de Mafalda Carmona.

[Ouça aqui as declarações de Mafalda Carmona à Rádio Observador]

CTI. “Saí por divergências técnicas”

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Dois dos seis coordenadores do elenco original da Comissão Técnica Independente (CTI) saíram antes do fim dos trabalhos. O jornal regional O Mirante noticiou no sábado que em causa estavam divergências com Rosário Partidário, que não foram confirmadas, nem desmentidas pela presidente da comissão, quando contactada pelo Observador na segunda-feira.

Em vez disso, Rosário Partidário respondeu que Mafalda Carmona, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pediu a exoneração “porque não tinha tempo para os trabalhos da CTI”. Só que esse argumento é rejeitado pela própria, que fala em “divergências” com a coordenadora-geral da comissão — que de profissionais evoluíram para problemas de “trato” e de “incompatibilidade pessoal”.

Já Daniel Murta, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, teria sido afastado, nas palavras de Rosário Partidário, porque “não tinha perfil para a função”, um argumento que o próprio também recusa.

Comissão do novo aeroporto ficou sem dois dos seis coordenadores, mas já os substituiu

A Comissão Técnica Independente é constituída por seis coordenadores, responsáveis por várias áreas temáticas — desde planeamento, acessibilidades rodoviárias e ferroviárias, ambiente, análise económica-financeira e jurídica — todos eles remunerados para o efeito, e liderados por Rosário Partidário, coordenadora-geral.

As duas versões da mesma saída

Mafalda Carmona foi um dos nomes escolhidos pela própria Rosário Partidário em novembro para integrar a comissão que tem até ao final do ano para apresentar ao Governo o relatório final sobre a localização do novo aeroporto. As duas especialistas não se conheciam antes desse convite e terá sido por referência de terceiros que a jurista foi convidada para o pelouro jurídico da comissão.

Ao Observador, Mafalda Carmona diz que a divergência em relação a Rosário Partidário surgiu durante a preparação da apresentação do primeiro relatório produzido pela comissão, em que esta faz um “reconhecimento e triagem” das opções estratégicas para o novo aeroporto da região de Lisboa. As duas especialistas não concordavam com a delimitação do “pacote de trabalho” atribuído à jurista. Esta entendia que o relatório deveria debruçar-se sobre a temática do direito do ambiente, enquanto a presidente da comissão queria que na apresentação fossem abordados “outros assuntos” jurídicos.

Na sua parte do relatório relativa ao pacote de trabalho (PT) da área jurídica — o PT que ocupa menos páginas, duas e meia — há um subcapítulo dedicado ao regime jurídico da área ambiental. Mafalda Carmona garante que só foi incluído porque fez “finca-pé”. “A professora Maria do Rosário Partidário achava que era uma opinião só minha que eu devia incluir questões de direito do ambiente. Tivemos aí um problema”, refere.

Pegões e Rio Frio mais Poceirão fazem parte das nove opções que vão ser estudadas para o novo aeroporto

A resolução do Conselho de Ministros que cria a comissão independente atribui ao PT6, que foi entregue a Mafalda Carmona, a responsabilidade pelo “estudo do enquadramento contratual e legal”. Uma das atribuições é a determinação da “existência de restrições legais, designadamente ambientais, que impeçam a realização do projeto ou que impliquem riscos, bem como a estratégia para resolvê-los (riscos de desenvolvimento de cada uma das soluções e implicações no calendário)”.

O entendimento de Mafalda Carmona é que esta formulação abrange o direito do ambiente e que a sua pasta teria “obviamente de trabalhar em conjunto” com a do ambiente, que se dedica a questões técnicas e não jurídicas. “Há questões de direito do ambiente que, claro, não são minhas — levantamentos de linhas de água, por exemplo. Mas, depois, isso tem de ser trabalhado em conjunto com a área jurídica para ver a tradução jurídica nos diplomas — o regime das áreas protegidas, o regime da própria avaliação de impacto ambiental”, argumenta.

Dessas divergências profissionais, “passámos para outras pessoais, quanto ao trato que deve imperar nas relações entre os membros da comissão”, afirma. Mafalda Carmona fala em “situações menos agradáveis”, sem querer especificar, para “proteger a imagem da comissão”. E garante: “Nunca deixei de fazer nada no tempo que era devido”.

As declarações de Rosário Partidário “colocam em causa a minha imagem profissional como alguém que entendeu que não deveria dedicar todo o tempo que a comissão exige e que merece. E isso é falso”. A jurista enviou, inclusive, um email a Rosário Partidário a dar conta “da minha reação à notícia, considerando que as divergências estão bem claras na carta de demissão que enviei”. Até agora não obteve resposta, disse à Rádio Observador.

CTI. “Saí por divergências técnicas”

Num novo contacto do Observador, Rosário Partidário reconhece que a falta de tempo não foi um dos motivos invocados por Mafalda Carmona, mas mantém que a jurista saiu por falta de tempo. “Não foi esse o motivo que me foi apresentado pela professora Mafalda Carmona, mas esse é o motivo que todos nós na CTI [comissão técnica independente] interpretámos como a razão”, afirmou, invocando situações anteriores ao pedido de demissão, que não quis especificar.

Mafalda Carmona pediu a exoneração por escrito, que teve efeitos a 29 de maio. Já Daniel Murta, que não se demitiu mas foi “cessada a sua atividade”, saiu já em fevereiro. Tanto Daniel Murta como Mafalda Carmona foram “imediatamente” substituídos, garante Rosário Partidário. Nuno Marques da Costa, da Universidade de Lisboa, substituiu Murta, e Raquel Carvalho, da Universidade Católica Portuguesa, ficou com o lugar deixado vago por Carmona.

Daniel Murta diz que o seu afastamento foi “totalmente arbitrário”

Também Daniel Murta foi escolhido e contactado pela própria Rosário Partidário para fazer parte da Comissão Técnica Independente. Ao professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra foi dada a pasta dos estudos de procura e das acessibilidades e infraestruturas de transportes. Mas não ficou no lugar muito tempo: foi afastado pela coordenadora-geral em fevereiro, menos de três meses depois de ter sido escolhido.

Na segunda-feira, Rosário Partidário disse, ao Observador, que Daniel Murta “não se demitiu” e que “foi cessada a sua atividade porque não tinha perfil para a função”. Um argumento que o próprio também rejeita. Em declarações ao Observador, Murta diz que a “única divergência” com a coordenadora-geral esteve relacionada com atrasos na contratação de consultores.

“A minha única divergência com a Dr.ª Partidário foi que, no meio de contrariedades relacionadas com a contratação de consultores e respetivo atraso, pediu-me o impossível”: ou seja, que se “substituísse” a uma equipa de dezenas de consultores, afirma. Murta recusou essa solicitação por lhe ser “impossível” e não estar prevista nas suas funções. Dois dias depois de um “episódio” em que esse pedido “ficou totalmente claro”, recebeu uma chamada de Rosário Partidário a anunciar o seu afastamento.

“Digo sem meias palavras que me surpreendeu totalmente”, diz, criticando o facto de não ter sido ouvido. O telefonema aconteceu no dia 10 de fevereiro e, a partir daí, cessou funções.

Segundo Daniel Murta, circularam duas versões quanto ao seu afastamento: além da que não teria o perfil adequado, a de que tinha “incapacidade para coordenar estudos de procura”. Mas também esse argumento — que, segundo garante, foi vertido por Rosário Partidário para um documento interno do LNEC (Laboratório Nacional de Engenharia Civil) — diz ser “totalmente falso”.

“Tenho alguns documentos que contrariam a segunda versão, que provam que estive a coordenar, a lançar os preparativos para que tivesse lugar o estudo de procura. Eu estive a trabalhar, vesti a camisola”, atira. Por isso, acredita que o seu afastamento foi “totalmente arbitrário, assente em narrativas de perfil ou incapacidade para coordenar falsas”.

Artigo atualizado às 20h07 com as declarações de Daniel Murta ao Observador