Distinguir machos de fêmeas, mesmo num mamífero pequeno como a toupeira-ibérica (Talpa occidentalis), deveria ser um processo simples: os machos têm testículos e as fêmeas não. Porém, nem todas as fêmeas seguem esta regra e as fêmeas da toupeira-ibérica têm não só testículos como um clitóris que se assemelha a um pequeno pénis.

Rafael Jiménez Medina deparou-se com este mesmo problema, nos anos 1980, durante o doutoramento em genética na Universidade de Granada, conta a revista Knowable em espanhol. O interesse do investigador era analisar os cromossomas destes animais com base em amostras recolhidas nos testículos (que pensava serem de machos), mas qual não foi o espanto quando entre os cromossomas sexuais, ora descobria XX (fêmeas), ora descobria XY (machos).

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À primeira vista, os testículos das fêmeas são semelhantes aos dos machos, e até produzem testosterona, mas enquanto os dos machos têm espermatozoides, os das fêmeas estão ligados a ovários funcionais — são assim chamados de ovotestis. A toupeira-ibérica, que tem o tamanho de uma mão, tem ainda um prepúcio a cobrir o clitóris — e é por aí que urinam — e conseguem fechar a entrada da vagina sempre que não estão com o cio. As hienas-malhadas são outro dos mamíferos conhecidos por ter um clitóris que se assemelha a um pénis e os lábios formam um pseudo-escroto.

O investigador espanhol ficou tão intrigado com esta espécie que desde o doutoramento se tem dedicado ao seu estudo — entre 1989 e 2004 desenvolveu armadilhas e métodos para estudar as fêmeas grávidas ou a amamentar. Num artigo publicado na Annual Review of Animal Biosciences, a equipa de Medina discute o “papel que as hormonas esteroides [como a testosterona e progesterona], bem como fatores genéticos e ambientais, pode ter no desenvolvimento do sistema urogenital, no comportamento agressivo e no domínio social“.

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“A genitália peculiar não deve questionar a sua feminilidade”

A primeira pergunta que se coloca sobre os animais intersexo é: como é que acontece? Em vários mamíferos, como nos humanos, existem situações em que alterações genéticas fazem com que as estruturas associadas às fêmeas tenham um aspeto semelhante às dessas estruturas nos machos. Isto acontece individualmente e não é característico da espécie. A exceção são as toupeiras e a hiena-malhada, nas quais as alterações genéticas estão presentes na espécie e são transmitidas à descendência em cada geração.

O curioso é que das três espécies de hienas existentes só uma desenvolveu órgãos masculinizados e não existe uma relação de parentesco entre toupeiras e hienas — logo a origem destes órgãos modificados não está relacionada. Mais, no caso das toupeiras, com oito espécies a mostrar claramente a masculinização dos órgãos femininos, parece que os testículos nas fêmeas seriam a norma e não a exceção.

A segunda pergunta que se coloca é: para quê? Para as hienas ainda não existe uma resposta conclusiva, mas nas toupeiras parece ser uma questão de sobrevivência. Os testículos das fêmeas de toupeira-ibérica são tanto maiores quanto maior a produção de testosterona e, quanto mais testosterona, maior a agressividade das fêmeas. Na época da reprodução (entre setembro e maio), quando o alimento abunda, a produção de testosterona diminui, as fêmeas ficam menos agressivas e a cópula é possível. Mas no verão, quando o solo está mais seco e duro e é mais difícil escavar túneis, a produção de testosterona aumenta e os músculos desenvolvem-se. As fêmeas têm de conseguir defender os seus territórios.

É impressionante a musculatura que têm. Quando se faz a dissecação de uma toupeira (seja fêmea ou macho) e se tira a pele, o que fica à vista é o corpo de um culturista”, disse Rafael Jiménez Medina à Knowable.

Curiosamente, nos machos acontece o contrário: os machos produzem mais testosterona e têm testículos maiores durante a época da reprodução; mas fora deste período, os testículos ficam com um terço do tamanho e a produção de testosterona cai para metade.

Não são só as mães que tomam conta da descendência

Na conclusão do trabalho, os autores defendem que a feminilidade e masculinidade vão muito além dos órgãos genitais que os animais apresentam e convidam-nos a “escapar à definição androcêntrica utilizada pela biologia reprodutiva”.

“A existência de machos e fêmeas é um pré-requisito para a reprodução sexuada, mas também podemos considerar que o requisito real é a existência de indivíduos capazes de funcionar como pais ou mães”, concluem os autores. As toupeiras-ibéricas fêmeas são boas mães, dizem: têm quatro crias por ano que amamentam durante um mês e que fazem crescer dos três gramas aos 45 nesse período — e isto considerando que a fêmea só pesa 53 gramas.

“Como mencionado, tanto as toupeiras quanto as hienas são mães excecionalmente eficientes, de modo que a sua genitália peculiar não deve questionar sua feminilidade. Com elas, aprendemos que não existe uma forma única de ser feminina entre os mamíferos.”