“Não vamos enviar para a Ucrânia sistemas de mísseis que poderiam atingir a Rússia”. Há um ano, a posição do Presidente dos Estados Unidos sobre o pedido de Kiev para serem fornecidos mísseis de maior alcance era clara: não iria acontecer. Mas Washington parece ter reconsiderado, após os múltiplos apelos das autoridades ucranianas para que fossem enviados os mísseis ATACMS. Em junho deste ano, os EUA assumiam que continuavam a rever a sua assistência à Ucrânia, enquanto oficiais sob anonimato garantiam que a discussão sobre os mísseis ainda estava em cima da mesa. Já na sexta-feira, estando o Presidente Volodymyr Zelensky de visita oficial a Washington, Joe Biden terá assegurado o aguardado envio deste armamento.

Segundo avançou a cadeia norte-americana NBC, os EUA vão mesmo fornecer uma “pequena quantidade” de mísseis ATACMS a Kiev. O anúncio não foi, para já, formalizado, mas a esperança é que traga vantagens no campo de batalha. “Agora é o momento”, sublinhou recentemente há Reuters um oficial norte-americano, numa altura em que a ofensiva e contraofensiva ucraniana produziu poucos resultados e as chuvas de outono se aproximam, trazendo um novo obstáculo no campo de batalha.

As táticas e movimentos antes da chuva. Os progressos são lentos e Kiev já teve de mudar a estratégia para furar as linhas defensivas russas

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Obter mísseis de longo alcance tem sido um dos principais objetivos da Ucrânia. “Os dois itens no topo da lista de desejos da Ucrânia são os ATACMS e os [caças] F-16”, como definiu Mark F. Cancian, do Center for Strategic and International Studies, em declarações à revista Time. Em ambos os pedidos, Kiev está a ver avanços nas negociações. No caso dos aviões de combate, que muitos aliados estavam reticentes em investir, a Ucrânia viu nascer uma coligação, da qual fazem parte nomeadamente os Países Baixos, a Dinamarca e Portugal — este último prometeu formar os pilotos ucranianos no uso destes equipamentos. Ainda nada está oficialmente fechado sobre os ATACMS, mas as expectativas estão certamente mais a favor de Kiev do que há um ano. Afinal, que mísseis são estes que a Ucrânia tem vindo a pedir? E podem mudar o jogo no campo de batalha?

O que são os mísseis ATACMS?

Os ATACMS, sigla para Army Tactical Missile Systems, (Sistemas de Mísseis Táticos do Exército, em português), são mísseis balísticos táticos produzidos pela fabricante de armas norte-americana Lockheed Martin. “São mísseis de superfície de longo alcance e ataque preciso, que providenciam capacidades críticas para atingir alvos de valor importante e em tempo sensível em quaisquer condições temporais”, pode ler-se na descrição no site da empresa, que produz anualmente cerca de 500 unidades destes equipamentos.

Estes mísseis, acrescenta a Lockheed Martin, são capazes de atingir alvos “muito além do alcance de canhões, foguetes e outros mísseis existentes do Exército” e “dão aos comandantes operacionais o poder de fogo imediato para vencer batalhas em profundidade”.

Os ATACMS começaram a ser desenvolvidos em 1980 e foram usados pela primeira vez na Guerra do Golfo. Segundo o U.S. Army Acquisition Support Center, foram usados extensivamente nas operações “Tempestade no Deserto”, o nome da campanha norte-americana iniciada depois das forças do Iraque terem invadido o vizinho Kuwait (1991); e “Liberdade do Iraque”, (2003), no âmbito da invasão lançada com o objetivo de destruir alegadas armas de destruição massiva no Iraque e eliminar o regime de Saddam Hussein.

Segundo dados divulgados por legisladores norte-americanos citados pelo Washignton Post, no final de agosto o exército norte-americano possuía 1.486 mísseis ATACMS no seu arsenal, apesar de o Pentágono se recusar fornecer um número. Estes mísseis ainda estão em produção, mas são designados apenas para vendas no exterior, uma vez que os EUA começaram a trabalhar em 2016 naqueles que viriam a ser os seus substitutos: os mais modernos Precision Strike Missile (PrSM).

Neste momento, a venda dos ATACMS é exclusiva a um grupo restrito de países, que inclui nomeadamente a Coreia do Sul, a Grécia, Roménia, Turquia e Polónia. A Ucrânia poderá tornar-se o próximo país autorizado a ter estas armas de longo alcance.

O que distingue os mísseis ATACMS  que a Ucrânia quer?

Há várias razões que tornam os mísseis ATACMS tão atrativos para a Ucrânia. O motivo principal? Têm um alcance de 300 quilómetros, o que pode ajudar os ucranianos a atingir alvos russos a longas distâncias, incluindo na Crimeia, enquanto o país se prepara para o segundo inverno em guerra. Estes equipamentos têm um alcance superior aos mísseis franceses SCALP e os ingleses Storm Shadow que ambos os países já autorizaram enviar para a Ucrânia, cujos modelos enviados possuem um alcance de 250 quilómetros.

O maior alcance dos ATACMS deverá permitir às forças ucranianas “disparar a partir de territórios mais seguros e não ter de se aproximar tanto das linhas de defesa russas para poder atingir um alvo mais distante”, sublinha Tom Karak, do projeto de defesa do think tank Center for Strategic and International Studies (CSIS), em declarações ao Wall Street Journal. Sabendo que Kiev possui estes equipamentos, as tropas russas podem ver-se obrigadas a mover centros de comando e instalações de armazenamento para pontos mais afastados da linha da frente, o que pode prejudicar os esforços de fornecimento de alimentos ou munições aos militares.

Além do alcance significativo, os ATACMS movem-se com mais rapidez que outros mísseis, alcançando uma velocidade de Mach 3 — ou seja, mais de três vezes a velocidade do som. Por oposição, mísseis com os Storm Shadow ou mesmo os russos KH-101 só atingem velocidades de cerca de 1126 e 965 quilómetros por hora, respetivamente. Podem, assim, ser essenciais para realizar ataques com uma pequena janela de tempo ou para atingir alvos que estejam em movimento.

Os ATACMS foram planeados para serem lançados a partir de veículos terrestres, ao contrário dos Storm Shadow, que são disparados a partir de aviões. Este é um fator importante, uma vez que a Ucrânia não fica tão dependente de plataformas aéreas e as suas forças terrestres saem reforçadas. De notar que os mísseis norte-americanos podem ser disparados a partir dos Multiple Launch Rocket System (MLRS, na sigla inglesa) e dos High Mobility Artillery Rocket System, os poderosos HIMARS que ganharam destaque no ano passado nos combates na Ucrânia. Ambos os equipamentos estão ao dispor das Forças Armadas da Ucrânia desde 2022 e os militares já estão familiarizados com o seu funcionamento.

“Um aspeto interessante sobre os lançadores HIMARS é que não revelam exatamente o tipo de mísseis que estão a carregar”, acrescenta ainda como vantagem Tom Karak, do CSIS. “Assumindo que um inimigo está a vigiá-los, não saberá necessariamente o que está lá dentro. Se se trata de um mais valioso ATACMS ou de um míssil de menor alcance”, aponta. Além disso, graças à mobilidade destes sistemas de lançamento, os ucranianos podem movê-los na sequência dos ataques e reposicionar-se noutra localização para novos ataques.

De notar que os ATACMS estão equipados com um de dois tipos de ogivas. Podem ser ogivas unitárias, isto é, com um explosivo único, que os analistas dizem ser mais apropriado para atingir alvos únicos específicos. Em alternativa, podem carregar munições de fragmentação — proibidas por uma convenção de que os EUA, Rússia e a Ucrânia não são signatários.

Além disso, os ATACMS possuem um sistema de orientação que combina navegação inercial com GPS e, ao contrário de outros mísseis balísticos, podem atingir alvos a partir de vários ângulos. “Um míssil balístico simples vai viajar numa trajetória balística, segue o arco-íris da gravidade, algo que é muito previsível e curvo. O benefício da manobrabilidade é que se pode interromper esse arco-íris e descer de uma maneira diferente,  manobrá-lo para acertar o alvo. Pode seguir-se um alvo em movimento e corrigir erros. E sim, é possível descer verticalmente”, disse ainda ao Wall Street Tom Karak.

Porque resistiram os EUA a enviar os ATACMS?

A resposta simples: podem levar a uma escalada na guerra. O argumento tem vindo a ser usado desde que a Ucrânia começou a pedir, há mais de um ano, armamento aos Estados Unidos. A cada novo pedido, por um equipamento mais moderno que o anterior, repetia-se. Desta vez, não foi exceção, não fosse a Rússia ter avisado que fornecer a Kiev mísseis de longo alcance seria cruzar uma “linha vermelha” e tornar Washington “parte do conflito”, nas palavras da porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russa.

Há também o já repetido receio dos EUA de que a Ucrânia use os mísseis norte-americanos para atacar o território russo. No entanto, as autoridades ucranianas têm assegurado repetidamente os aliados de que não o farão, pelo menos com o armamento fornecido pelo Ocidente.

Estes não são os únicos argumentos contra o envio dos mísseis. É que os EUA definiram um stock fixo de ATACMS, adianta o Washington Post. O Pentágono temia que a retirada de uma quantidade suficiente de mísseis dos arsenais militares relativamente pequenos para fazer uma diferença na Ucrânia minasse a prontidão de Washington para defesa.

Os ATACMS vão mudar o jogo na Ucrânia?

As opiniões dividem-se. Não há dúvida de que os mísseis norte-americanos podem trazer vantagens às tropas ucranianas no campo de batalha, mas até que ponto é que podem contribuir para virar o jogo? Oficiais da administração de Biden insistem que os ATACMS não são uma solução mágica. A guerra, que se prolonga há 19 meses, ainda é uma batalha de artilharia e os avanços são medidos ao metro, estando as forças ucranianas a procurar ultrapassar as linhas defensivas russas construidas ao longo de vários meses.

Nós continuamos a fornecer à Ucrânia coisas do nosso caixote do lixo, tendo em conta às nossas capacidades de mísseis de topo“, considera Tom Karak, do CSIS. É um erro que, defende, os EUA podem corrigir em parte com o fornecimento dos ATACMS.

“Quantos mais, melhor para a Ucrânia”, sublinha também Frederik Mertens, analista do Hague Center for Strategic Studies, em declarações ao Newsweek. O investigador considera que estes mísseis podem “verdadeiramente fazer a diferença”, permitindo às tropas ucranianas atingir alvos russos importantes e empurrá-los para posições mais afastadas. “Se tiverem mísseis suficientes disponíveis ao seu dispor, conseguem lançar ataques planeados com múltiplos lançadores simultaneamente e confundir as defesas aéreas russas”, acrescenta.

Há, no entanto, quem não partilhe da mesma opinião. Num artigo de opinião publicado em setembro no Foreign Policy, intitulado “Why There Are No Game-Changing Weapons for Ukraine”, Franz-Stefan Gady defendeu que “não há alternativa para o lento e metódico processo de reduzir a presença das tropas russas na Ucrânia”. O analista do Institute for Strategic Studies destacou ainda dois motivos pelos quais os ATACMS poderão ter um impacto muito mais limitado no campo de batalha do que se pensa: os ucranianos já receberam sistemas semelhantes, apesar de terem um alcance menor; conduzir uma campanha de batalha profunda para desmantelar sistematicamente o sistema militar russo, nomeadamente através da interrupção de linhas de abastecimento, é muito mais difícil e uma operação demorada.

O analista não quer com isto dizer que os equipamentos não devem ser fornecidos à Ucrânia ou que não vão trazer benefícios significativos. Alerta, no entanto, contra a criação de expectativas elevadas de sucesso após a entrega do armamento. “A esperança de que os sistemas ATACMS ou Taurus possam ajudar a virar o jogo parece ignorar a sistemática adaptação russa desde a introdução dos lançadores de mísseis HIMARS no verão de 2022”.