Siga o nosso liveblog sobre o conflito israelo-palestiniano

O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), em Haia, nos Países Baixos, começou esta quinta-feira a julgar o processo apresentada a 29 de dezembro pela África do Sul, que, num documento de 84 páginas, acusa Israel de ter violado a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 9 de dezembro de 1948, na Faixa de Gaza.

Tanto Israel como a África do Sul assinaram a convenção. Todos os Estados que subscreveram o documento comprometem-se a não cometer, prevenir e castigar o genocídio, definido como um “ato cometido com a intenção de destruir, totalmente ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.

“Julgamento em Haia é um perigo para Israel”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A primeira audiência do principal órgão judicial da ONU, composto por um grupo de 15 juízes — que inclui um magistrado israelita sobrevivente do Holocausto e que legitimou a ocupação de terras dos palestinianos), ouviu esta quinta-feira a argumentação sul-africana.

O país, que é apoiado por mais de meia centena de Estados, defende que o TIJ deve decretar medidas de emergência provisória, incluindo ordenar que Israel cesse imediatamente as operações militares e todos os “atos genocidas”. Quer assim “proteger contra mais danos severos e irreparáveis os direitos do povo palestiniano, que continuam a ser violados impunemente sob a Convenção do Genocídio”.

A defesa de Israel no Tribunal Internacional de Justiça está marcada para sexta-feira. Depois das duas audiências, espera-se que os juízes cheguem dentro de poucas semanas a uma resposta sobre o pedido da África do Sul para que sejam tomadas medidas de emergência provisórias. O julgamento do caso, no entanto, pode levar bastante mais tempo. Os veredictos relacionados com questões de guerra costumam prolongar-se por vários anos.

Quais são as acusações feitas pela África do Sul?

No documento apresentado ao TIJ, que pode ler na íntegra aqui, a África do Sul “condena inequivocamente todas as violações do direito internacional por parte de todos os lados”, referindo o ataque do Hamas contra civis israelitas a 7 de outubro, bem como a tomada de reféns por parte do grupo terrorista. “No entanto, nenhum ataque armado ao território de um Estado, não importa o quão grave for, pode justificar ou defender violações da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948”, lê-se.

A argumentação sobre a acusação de “atos genocidas cometidos contra o povo palestiniano” divide-se em oito pontos:

1. Assassinato de palestinianos em Gaza. Um palestiniano é assassinado a cada quatro minutos, diz o documento. “Mais de 21.110 [o número de vítimas mortais subiu entretanto para 23.357] palestinianos foram mortos desde que Israel iniciou o seu assalto militar a Gaza”, e as mais de 7 mil continuam desaparecidos. “Aproximadamente uma em cada 100 pessoas foi morta (…) e centenas de famílias multi-geracionais foram inteiramente mortas, sem quaisquer sobreviventes — mães, pais, crianças, irmãos, avós, tias, primos — muitas vezes mortos em conjunto.”

O nível de “mortalidade nas famílias” é de tal ordem que, de acordo com a acusação, os médicos em Gaza cunharam um novo acrónimo WCNSF, que representa “wounded child, no surviving family” (“criança ferida, sem familiares sobreviventes”, em tradução livre) para identificarem menores.

  1. Ofensas físicas e mentais graves aos palestinianos. “Mais de 55.243 palestinianos ficaram feridos [dados do final de dezembro] nos ataques militares de Israel em Gaza”, alega o documento, sublinhando tratar-se a maioria deles de mulheres e crianças. “Queimaduras e amputações são ferimentos comuns, estimando-se que mil crianças tenham perdido uma ou duas pernas.” Lê-se ainda: “As crianças no nosso programa de saúde mental estão a dizer-nos que preferem morrer a continuar a viver em Gaza.”  Por outro lado, o documento refere o impacto causado nas crianças com a exposição permanente à violência, bem como a “disrupção no acesso à educação”.  À data da entrega do documento, alega a África do Sul, 4.037 estudantes e 209 educadores tinham sido matados desde o início desta guerra , e 74% das escolas sofreram danos ou foram totalmente destruídas.”Além da sua campanha militar”, continua o documento, “Israel tem-se empenhado na desumanização e no tratamento cruel, desumano dos palestinianos. Um número elevado, incluindo crianças, foi preso, vendado, forçado a tirar a roupa e a permanecer ao frio, antes de serem levados para localizações desconhecidas, acusam ainda.
  2. Expulsão em massa das habitações e desalojamento de palestinianos. O documento aponta para os 1.9 milhões de pessoas — “cerca de 85% da população” — que se encontram desalojadas. 60% das habitações em Gaza foram destruídas [dados do fim de dezembro]. “Não há nenhum local seguro para onde possam fugir, aqueles que não podem sair ou que se recusam a ser deslocados foram mortos ou estão em risco extremo de serem mortos nas suas casas.”Houve várias denúncias de ataques ou assassinatos por parte das forças israelitas enquanto os palestinianos tentavam fugir da zona de conflito, e de tratamento desumano e “degradante”, detenções “arbitrárias” e sem fundamento.A acusação recorda depois como Israel ordenou aos palestinianos para saírem do norte de Gaza para o sul e depois atacou zonas que tinha indicado serem seguras, no sul. Refere como a 1 de dezembro, por exemplo, assim que terminou um cessar-fogo acordado de 8 dias, Israel distribuiu panfletos onde dizia aos palestinianos para abandonarem áreas no sul de Gaza (que representa cerca de 30% do território), para onde lhes tinha sido indicado anteriormente para irem. Foram novamente deslocados. O documento menciona como Israel divulgou online um mapa de Gaza, dividido em centenas de parcelas para que as pessoas saíssem desses locais quando o exército lançava o aviso de ataque aéreo. Problema: não dizia para onde as pessoas podiam sair e nem todos tinham acesso à internet já que não há eletricidade no território.A África do Sul recorda ainda os avisos das Nações Unidas e de outras organizações internacionais de que a ordem de evacuação dos hospitais, que se tem repetido sucessivamente, implicava praticamente uma sentença de morte para os doentes.
  3. Privação de acesso a comida e água. Israel declarou um “cerco completo” a Gaza a 9 de outubro, “impedindo que eletricidade, comida e água” entrassem no território. “Apesar de o cerco ter sido, entretanto, parcialmente aliviado, com a permissão de entrada a alguns camiões humanitários desde 21 de outubro de 2023, isto mantém-se insuficiente e bastante abaixo da média diária de cerca de 500 camiões por dia, antes de outubro de 2023.”A África do Sul acusa Israel de empurrar os palestinianos para o limiar da fome, argumentando que a maior parte da população está a passar fome e que o problema agrava-se todos os dias. “Desesperadas, famintas e aterrorizadas, as pessoas estão agora a parar os camiões de ajuda humanitária, a tirar comida e a comê-la no momento”, refere o comissário-geral da UNRWA.De acordo com a Organização Mundial da Saúde, “uns inéditos 93% da população em Gaza enfrentam níveis de fome de crise, insuficiência de alimentos e níveis elevados de desnutrição.” Cita ainda os relatos de um coordenador médico: “Onde quer que vamos, as pessoas pedem-nos comida, até no hospital. Entrei no departamento de urgências e alguém com uma ferida aberta e a sangrar, uma fratura aberta, pediu comida.” O pão é escasso ou não existente, o gado está faminto e as plantações estão destruídas. Os especialistas estimam que o número de mortos por fome ou doenças vai ultrapassar o registado na sequência de ataques aéreos.
  4. Privação de acesso a abrigos adequados, roupa, higiene e saneamento. A maioria dos 1.9 milhões de palestinianos deslocados em Gaza procura abrigo nas instalações da UNRWA, “que consistem principalmente em escolas e tendas”. O documento argumenta que essas localizações “não são seguras” e que, apesar de ter distribuído as coordenadas para os abrigos do organismo, Israel “matou centenas de homens, mulheres e crianças que procuravam abrigo nas instalações da UNRWA, matando mais de mil” dessas pessoas.Os voluntários relatam que alguns palestinianos chegam carregando os corpos dos seus filhos mortos. Os próprios voluntários levam os filhos para o trabalho, “para que saibam que estão seguros ou para que possam morrer juntos”, pode ler-se no documento. Em algumas instalações, mais de 700 pessoas usam a mesma casa de banho e cerca de 25 mulheres por dia entram em trabalho de parto. As condições sanitárias são praticamente inexistentes. Raparigas e mulheres com menstruações são as mais impactadas.
  5. Privação de assistência médica aos palestinianos. “Quase acima de tudo o resto, o ataque militar em Gaza tem sido um ataque ao sistema de saúde, indispensável à vida e sobrevivência dos palestinianos em Gaza”. Neste ponto, a África do Sul cita uma Relatora Especial das Nações Unidas, que afirmou que Israel “declarou uma ‘guerra implacável’ ao sistema de saúde em Gaza, que foi ‘completamente obliterado'”. Apenas 13 de 36 hospitais e 18 de 72 centros médicos funcionam. Em média, quatro profissionais de saúde morrem todos os dias— até 29 de dezembro, tinham morrido 311. Em muitos hospitais, os palestinianos estão apenas à espera de morrer, avisa a África do Sul. O documento recorda também como a falta de energia e a evacuação forçada de hospitais como o Al-Shifa levaram à morte de cinco bebés prematuros e de 40 doentes nas unidades de cuidados intensivos e de hemodiálise. E não deixa de referir o caso dos quatro bebés deixados para trás no hospital Al-Nassr durante a evacuação forçada cujos corpos em decomposição foram mais tarde encontrados nas suas camas hospitalares.
  6. Destruição da vida palestiniana. Israel destruiu património mundial antigo, lugares de culto, universidades e escolas, pondo em risco a futura educação dos palestinianos. O documento refere que, a 16 de novembro de 2023, 15 Relatores Especiais das Nações Unidas e 21 membros dos grupos de trabalho das Nações Unidas observaram que “o nível de destruição em habitações, hospitais, escolas, mesquitas, padarias, canalizações de água, esgotos e redes de eletricidade ameaça tornar impossível a continuação de vida em Gaza”.
  7. Imposição de medidas que pretendem prevenir o nascimento de palestinianos. Estima-se que duas mães são mortas a cada hora em Gaza, refere o documento, que aponta ainda para o facto de as crianças e mulheres representarem 70% do número total de vítimas mortais. “Mais de 7.729 [este número subiu entretanto para perto de 10 mil] crianças foram mortas até 11 de dezembro de 2023 e, pelo menos, 4.700 outras mulheres e crianças estão desaparecidas, acreditando-se que estejam debaixo dos escombros”.Esta quinta-feira, em tribunal uma das advogadas sul-africanas referiu que 117 crianças morrem por dia, ou seja, quase cinco crianças por hora. O documento de 84 páginas refere ainda relatos de “múltiplas testemunhas oculares” sobre o assassinato de mulheres grávidas por parte de soldados israelitas, algumas enquanto tentavam aceder a cuidados de saúde. Relata ainda como os médicos estão a realizar histerotomias a mulheres jovens para “salvar as suas vidas”. E como os nascimentos prematuros aumentaram entre 25 a 30% devido ao stress. Sem equipamentos médicos, estes bebés têm poucas hipóteses de sobreviver, alerta.

Para que o julgamento penda para o lado da acusação, a África do Sul terá de conseguir provar que o objetivo de Israel vai para além da aniquilação do Hamas, tendo como objetivo final a destruição do povo palestiniano. Para isso, o documento lista 17 citações dos mais altos cargos públicos israelitas — incluindo o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, o Presidente, Isaac Herzog, e o ministro da Defesa, Yoav Gallant — que “evidenciam que a intenção específica de cometer atos genocidas ou a falha em preveni-los tem sido significativa e assumida” desde outubro de 2023.

O que responde Israel?

Israel rejeita categoricamente as acusações da África do Sul. “Não há nada mais atroz ou absurdo do que esta acusação”, disse na terça-feira o Presidente israelita, alegando, durante a visita do secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, que o assassinato de mais de 23 mil pessoas em Gaza se trata de um ato de auto-defesa. “Na realidade, os nossos inimigos, o Hamas, pedem a destruição e aniquilação do Estado de Israel, o único Estado-nação do povo judeu.”

Eylon Levy, porta-voz do governo israelita, acusou a África do Sul de ser “cúmplice” do Hamas. “Fomos claros em palavras e ações de que estamos com a mira nos monstros de 7 de outubro e estamos a inovar formas de defender a lei internacional”, disse em declarações ao canal televisivo i24. “A nossa guerra é contra o Hamas, não contra o povo de Gaza”, defendeu, por outro lado, Daniel Hagari, porta-voz do exército israelita, citado pelo The New York Times.

Que países apoiam (ou rejeitam) o julgamento contra Israel?

Vários países declararam apoio à África do Sul no caso apresentado contra Israel: a Malásia, Jordânia, Colômbia, Brasil, Turquia, Bolívia, Venezuela, Maldivas, Namíbia e Paquistão, além dos 57 Estados-membros da Organização para a Cooperação Islâmica e dos 22 países que formam a Liga de Estados Árabes.

Por outro lado, os EUA rejeitam o caso de genocídio apresentado contra Israel, considerado “sem mérito, contraproducente e completamente sem fundamento” pelo porta-voz da Segurança Nacional, John Kirby, durante uma conferência de imprensa na Casa Branca, a 3 de janeiro. O Reino Unido também se recusou a apoiar o julgamento, sobre o qual a União Europeia optou por manter-se em silêncio.