Tem dez destinatários e um grande ponto de exclamação: travar a manifestação “profundamente racista e xenófoba” que sai à rua a 3 de fevereiro. Um coletivo de associações escreveu uma carta aberta, dirigida ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ao presidente da Assembleia, Augusto Santos Silva, a António Costa e a outros ministros e líderes de comissões, a pedir que impedissem a ação organizada por grupos de extrema-direita que pretendem protestar “Contra a Islamização da Europa”.

Os organismos Grupo 1143 e Racismo Contra Europeus convocaram uma manifestação “pelas ruas com mais imigrantes do país, sobretudo de origem islâmica”, nomeadamente na zona do Martim Moniz e Intendente, para o próximo dia 3 de fevereiro. Segundo eles, o protesto serve para “demonstrar aos traidores que nos governam desde o golpe de 1974 que existem portugueses que não querem alterar o seu modus vivendi, nem estão dispostos a sacrificarem mais mulheres no altar do multiculturalismo”.

Perante esta convocatória, um coletivo, que o Observador sabe tratar-se da Rede 8 de Março – que junta “diversas associações feministas, antirracistas, de defesa de direitos das pessoas LGBT e das imigrantes e de combate à precariedade” –, decidiu escrever uma carta com o intuito de impedir a ação que “põe em causa a segurança das pessoas imigrantes que vivem e trabalham nesta área de Lisboa”.

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O documento, a que o Observador teve acesso, “exige que todos os responsáveis políticos e institucionais façam cumprir o artigo 13.º da Constituição, o princípio da igualdade, e acionem os mecanismos processuais para que se aplique o artigo 240.º do Código Penal, relativo à discriminação e incitamento ao ódio e à violência”.

Desta forma, o coletivo admite que o principal “objetivo é travar a saída desta manifestação”, que, “por poder qualificar-se como ‘atividades de propaganda organizada que incitem à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião’ constitui como incitamento ao ódio e à violência e não mero exercício da liberdade de expressão”, refere o coletivo.

A Rede 8 de Março, que organiza anualmente as marchas e manifestações do Dia Internacional das Mulheres, em várias cidades portuguesas, assegura ainda que pretende “defender a segurança de todas as pessoas imigrantes em Portugal, combater o racismo, a xenofobia, a hostilidade religiosa e o crescimento do discurso de ódio a que temos vindo a assistir, particularmente vindo de partidos e movimentos de extrema-direita”.

Para sustentar essas afirmações, o coletivo enumera vários exemplos de “ataques contra imigrantes”, nomeadamente o que aconteceu em janeiro de 2023, quando um grupo de jovens espancou um cidadão nepalês, em Olhão, no distrito de Faro.

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“Quando ainda se pensava estarmos perante um ato isolado, o Ministro da Administração Interna descreveu o ato como uma ‘agressão bárbara’, um ‘comportamento inadmissível e inaceitável’ que deve ser ‘exemplarmente punido’”, recordou o grupo, lembrando ainda a visita do Presidente à cidade algarvia.

Além disso, o coletivo referiu ainda do incêndio, em fevereiro do mesmo ano, no bairro da Bairro da Mouraria, em Lisboa, que matou duas pessoas e feriu 14, de origem asiática, que levou Marcelo a dizer que “num momento em que a economia portuguesa apela à vinda de imigrantes por falta de mão-de-obra, tem de se ter noção que isso implica estruturas adequadas para acompanhar aqueles que chegam e para evitar situações extremas”.

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“Os exemplos podiam continuar, porque há muitos”, continua o grupo. “É manifesto que, nos últimos tempos, a comunidade de imigrantes em Portugal, em especial provenientes do sul da Ásia – Bangladesh, Nepal, India e Paquistão – tem sido objeto de uma campanha de desinformação e ódio, em especial nas redes sociais.”

A Rede 8 e Março menciona assim os conceitos “invasão”, “insegurança”, “ódio religioso” e “necessidade de mostar que estão a mais e não são bem-vindos”, para afirmar que “as ruas de Portugal são cada vez menos seguras para as pessoas imigrantes”.

A negação e inércia sistemáticas são o terreno fértil para a impunidade do racismo e da xenofobia, que têm vindo a escalar e devem ser absolutamente inaceitáveis em qualquer democracia. O silêncio das instituições é cúmplice. Não o acompanharemos nem o legitimaremos”, remata o coletivo.

O Observador entrou em contacto com alguns elementos do coletivo, que encaminhou os esclarecimentos para mais tarde.

Além disso, o Observador tentou entrar em contacto com o Grupo 1143, uma fação da claque Juventude Leonina, Sporting Clube de Portugal, que está a associada a confrontos de índole racista e que outrora foi liderada pelo militate neonazi Mário Machado, que se recusou a prestar declarações.

O Subintendente Sérgio Soares, diretor do gabinete de imprensa e relações públicas da PSP, confirmou estar a “acompanhar e a monitorizar a situação” do protesto movido por grupos de extrema-direita, que tem sido amplamente partilhado nas redes sociais, nomeadamente nos grupos Telegram, assim como a analisar “a situação de risco para ulterior planeamento e execução da operação policial”.

Manifestação com “pessoas de todas as cores, religiões e nacionalidades” em resposta à marcha “islamofóbica”

Além da carta aberta, o jornal Expresso noticiou que os coletivos estão a organizar uma manifestação em resposta à marcha “islamofóbica”. Como tal, cerca de “60 a 70 ativistas” reuniram-se, este domingo, num bar em Lisboa, para “organizar a defesa e resistência à manifestação”.

Segundo Maria João Costa, membro das associações Habita e Sirigaita, a reunião serviu para discutir os planos concretos à reação, que que terá como participantes “pessoas de todas as cores, religiões e nacionalidades”.

Queremos celebrar a vida multicultural e em segurança, contra as mensagens e movimentos ameaçadores racistas e xenófobos. Estamos a pensar em conjunto como nos proteger. E as ideias e ações estão em discussão”, disse ao mesmo jornal, sem revelar mais detalhes sobre a marcha.

Para a ativista, o verdadeiro problema não envolve os imigrantes retratados pela extrema-direita. “A cidade está a sofrer muito é com a invasão de outros estrangeiros, que não são estes que contribuem e trabalham na comunidade. São aqueles que fazem inflacionar as rendas e preços das casas, expulsando os habitantes da sua cidade. Falo dos residentes não habituais, dos Vistos Gold e dos nómadas digitais que andam a tornar a habitação não acessível aos moradores”, disse.