A ex-ministra Francisca Van Dunem não sentiu, na sua vida profissional, que tivesse de se esforçar mais para alcançar reconhecimento por ser negra, mas sentiu, por vezes, que o seu mérito causava estranheza, a “outra faceta do preconceito”.

A antiga ministra da Justiça explicou à Lusa que o seu mérito “causava estranheza, por não ser esperado” e que a “estranheza, o espanto, são outra faceta, menos abordada, do preconceito”.

Em 2015, Francisca Van Dunem foi a primeira ministra negra em Portugal, mas assumiu que esse facto não a pressionou, apesar de admitir “que membros da comunidade tenham percecionado” a sua nomeação “como a quebra de um interdito” e admitiu valorizar esse feito.

A antiga ministra revelou à Lusa que, durante os seus dois mandatos, foram enviadas ao seu gabinete “várias comunicações anónimas, veiculando discursos de ódio e ameaças“, mas que o seu chefe de gabinete lhes dava “o destino adequado: o lixo”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Entre outros episódios que teve de enfrentar, referiu que “nada disso obstaculizou” o seu exercício funcional. “Agi sempre como achei que devia e os bloqueios que vivi terão sido mais tributários das circunstâncias próprias daquele exercício governativo, associadas a peculiaridades do meu caráter, do que da minha condição de género ou raça”, contextualizou.

Van Dunem considerou que, durante estas cinco décadas de democracia, “a evolução da sociedade portuguesa foi muito lenta e pouco atenta à crescente heterogeneidade de origem da população e ao efeito de exclusão que a ausência de diversidade étnico racial nas estruturas do poder central e local produz nos grupos não representados ou sub-representados”.

“É verdade que, no século XXI — quase dois séculos volvidos sobre a abolição da escravatura —, a representatividade deveria ter como referência maior a comunhão de princípios, de opiniões, ou a adesão a certas políticas, do que propriamente a raça, a cor dos olhos, a textura dos cabelos ou a espessura dos lábios. Mas não é esse, ainda, o mundo em que vivemos”, lamentou.

A antiga ministra referiu que a evolução dos africanos e afro-portugueses em posições de liderança, na sociedade, “se faz, mas a um ritmo muito lento, havendo momentos em que é invisível, por ser inexistente”.

“Aquilo a que temos assistido são epifenómenos, e não é por demérito ou falta de talento das pessoas. É por desigualdade de oportunidades de partida. Por desigualdade de condições de base: as dificuldades sociais e económicas repercutem-se no sucesso escolar, que por seu turno afeta a escolha das profissões e os percursos profissionais”, disse.

Ainda há um longo caminho a percorrer, mas o Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação procura acelerá-lo, indicou.

A antiga Procuradora-Geral Distrital de Lisboa (2007 a 2015) avaliou a forma como as questões étnico-raciais têm sido abordadas pelos órgãos de Governo e sociedade civil em Portugal “como um misto de negação e receio”.

“Negação que tem raiz no receio de abrir uma caixa de Pandora, cuja explosão será, no entanto, inevitável. A afirmação, tantas vezes repetida, de que a questão racial não era uma questão em Portugal limitou durante muitos anos o debate aberto sobre esse tema”, contextualizou.

A jurista não crê “que existam lacunas significativas na legislação” portuguesa face à proteção e igualdade das comunidades étnico-raciais, mas referiu que essas lacunas são “identificáveis nas práticas, tanto institucionais como individuais”.

Assim, “pouco adianta que exista legislação a punir a violência racial se as instituições com competência para as investigar e os tribunais com competência para as julgar as desvalorizarem”, indicou.

“O que importa é que tomemos a sério o que é sério. Que, no mínimo, institucionalmente, os titulares respondam à altura das suas obrigações, que passam necessariamente pela obediência à Constituição e pelo respeito ao princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei e as instituições, sejam estas públicas ou privadas”, indicou.

Para si, as políticas de imigração devem “inscrever-se em políticas sociais mais amplas, em matéria de educação, emprego, habitação. Devem também identificar respostas diferenciadas e niveladoras, nomeadamente em matéria de acesso ao ensino e à formação profissional, para comunidades com maiores dificuldades de integração”.

Relativamente às críticas de algum racismo entre as forças de segurança da sociedade portuguesa, a também antiga ministra da Administração Interna confirmou à Lusa que, enquanto ocupou o cargo, se deparou com a “pendência, na Inspeção Geral da Administração Interna, de procedimentos visando averiguar situações envolvendo atos de discriminação racial praticadas por agentes das forças de segurança no exercício de funções”.

“Este tipo de comportamentos previne-se com um rigoroso escrutínio da assimilação de princípios constitucionais básicos, como o da igualdade e não discriminação — na seleção para o ingresso, com uma formação contínua em matéria de direitos fundamentais, com uma maior inclusão da diversidade na admissão de agentes para as forças de segurança”, indicou.